sexta-feira, 7 de outubro de 2016
Galera (capítulo 1) – A felicidade na alvorada de Bill Gates
No jornal O Estado do Maranhão editei, ao lado da jornalista Francília Cutrim, um caderno especial dirigido ao público adolescente denominado Galera. E foram muitas reportagens, entrevistas e experiências ao longo de quase dois anos de convívio com uma fauna sedenta de informação e atônita em meio ao carrossel tecnológico que começava a girar – e a transformar a comunicação - em plena década de 1990. Um desafio e tanto pra qualquer repórter. Escrever para adolescente carecia de uma linguagem diferente, uma fala de muitas tribos que reproduzisse um pouco a maneira de se comunicar do jovem daquela geração. Eram edições semanais, leitores cativos, pautas fora do eixo, cartinhas endereçadas aos editores... E eu gostava daquele exercício.
O Galera dedicou a edição do dia 5 de julho de 1997 à felicidade, com alguns textos abordando o tema por diferentes fechaduras, e uma entrevista que fiz com o professor Agostinho Marques. Leia:
Existirmos, a que será que se destina?
Agostinho Ramalho Marques Neto, 50, foi professor de Direito e Filosofia da UFMA por mais de 20 anos. Tem vários trabalhos publicados nessas duas áreas e também no campo da Teoria Psicanalítica. Ao longo dos anos, Agostinho proferiu mais de 150 palestras em São Luís e em instituições de ensino superior de várias cidades do Brasil e do exterior. Desde o início deste ano, Agostinho Marques vem atendendo em seu consultório de psicanálise, no Edifício Monumental. Com fala mansa e cara de quem sabe das coisas, sem afetação, Agostinho recebeu a equipe do Galera em seu apartamento e transformou a correria da quinta-feira numa espécie de calmaria, dessas comuns apenas em templos e mesquitas. E o que é mais importante: para falar sobre felicidade.
Vamos começar com um trecho da canção de Caetano: “Existirmos, a que será que se destina?”
Agostinho Marques – Esses versos de Caetano Veloso a que você me propôs como mote me trouxeram a questão da felicidade como aquilo a que cada um destina sua existência. A ideia e a busca da felicidade têm ocupado os seres humanos desde tempos imemoriais. Ainda hoje o que a prática clínica da Psicanálise nos mostra cotidianamente é que o que está por trás das queixas dos pacientes é, afinal de contas, uma demanda de felicidade.
E o que é felicidade, afinal?
Agostinho Marques – A simples formulação dessa pergunta já supõe que a felicidade seja alguma coisa. Mas que coisa é essa? A simples colocação dessas questões nos aponta no sentido da extrema variabilidade tanto da noção de felicidade quanto dos objetos cuja obtenção seria necessária para realizá-la, como também dos meios de consegui-la.
Existe relação entre dinheiro e felicidade?
Agostinho Marques – Eis uma pergunta interessante, porque remete tanto para a questão dos objetos como para a dos meios de obter a felicidade. Raramente encontramos alguém para quem a simples posse do dinheiro seja suficiente para garantir a felicidade. Algo mais é necessário, figurando o dinheiro antes como meio do que como fim. Para os antigos filósofos gregos, em particular Aristóteles, a felicidade - que em grego se chama eudaimonia, literalmente “bons demônios” - é o fim último, o bem supremo a que nossa vida se destina.
Existem meios de se chegar à felicidade?
Agostinho Marques – Essa felicidade, própria do homem livre, obtém-se pelo cultivo das virtudes éticas, pela participação política na vida da cidade e, para alguns, pela contemplação da verdade sobre os seres, cujo caminho é a prática da filosofia. Tem-se aí uma visão estática da felicidade. Este é um estado que, uma vez atingido, não se perde mais. Como disse Aristóteles, “o homem feliz nunca poderá ser desditoso, porque jamais praticará atos odiosos ou vis”. Os pensadores modernos trocaram essa visão estática por uma visão dinâmica da felicidade. Para eles, a felicidade é algo que só é possível no próprio movimento da vida e que num dado momento se alcança, mas no momento seguinte se pode perdê-la. Hobbes [Thomas Hobbes], um dos mais importantes filósofos modernos, diz que a felicidade é a contínua realização dos desejos, mas adverte que não há um desejo “último” no qual a felicidade se realize por completo e de modo duradouro. Isso significa que propriamente não se é feliz, mas que se pode ir sendo feliz, e que a felicidade passada ou presente não basta para garantir a futura. Esses exemplos mostram o ponto essencial da questão, que já mencionei: a extrema variabilidade da noção e dos objetos da felicidade e dos meios de alcançá-la. Essa variabilidade ocorre não apenas de uma cultura para outra, mas no interior da mesma cultura, ao longo de sua história e dentro de qualquer momento desta, assim como ocorre também em cada indivíduo. Há uma ineliminável dimensão de subjetividade na noção de felicidade, de tal modo que o que antes foi felicidade hoje pode parecer uma grande desventura e vice-versa. Isso sem falar que o mesmo objeto ou o mesmo acontecimento pode, ao mesmo tempo, provocar na mesma pessoa a sensação de felicidade, por um lado, e de infelicidade, por um outro. Isso significa que esses dois sentimentos não são necessariamente excludentes um do outro.
Quem é feliz?
Agostinho Marques – Quem consegue existir com certa leveza e disso fruir.
Você é feliz?
Agostinho Marques – Na maioria das vezes, sim.
Então felicidade é um estado de espírito?
Agostinho Marques – De algum modo, embora nem todo estado de espírito seja de felicidade.
Alegria é felicidade?
Agostinho Marques – Não. Mas tem muito a ver com ela. Às vezes pode ser um sinal dela.
A tristeza é a antítese da felicidade?
Agostinho Marques – Não necessariamente. Ser feliz e viver momentos de tristeza não são forçosamente incompatíveis.
Existe um modelo de felicidade?
Agostinho Marques – Não. Isso depende da idealização de cada um.
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