sexta-feira, 12 de agosto de 2011
Cordel dos encantados
O começo da história não difere de muitos casos que acontecem no cotidiano das cidades e que ilustram os boletins de ocorrência de inúmeras delegacias. Um cidadão comum, taxista, numa noite de plantão na praça, tem a vida abreviada por dois tiros à queima-roupa e uma punhalada no peito. José Vieira da Silva foi morto no próprio táxi por Vanderlei Teixeira Batista, numa emboscada entre as cidades de Imperatriz e Açailândia, no Maranhão. Era 4 de abril de 1993. O taxista deixou filhos, esposa e um Corcel II que lhe servia de escritório.
Na cidade grande, o caso certamente ganharia as páginas policiais e seria servido como aperitivo em programas de rádio e TV que exploram os dramas urbanos, na faixa de audiência do chamado mundo cão. No interior nordestino, porém, casos como a morte de José Vieira ganham vida nos cordéis de artistas anônimos – poetas populares que sobre destroços, brigas, morte, religião, seca, casamento e política erguem versos. A história poderia estar estendida no varal da vida sob o título de “A peleja do taxista Zé Vieira e o desalmado Vanderlei”.
No Maranhão, o cordel nunca foi o forte. Mas, como em terra de poetas ter uma estrofe na manga é lei, o desfecho dessa história está num ensaio de cordel. O crime foi parar nas barras da Justiça e, curiosamente, acabou em poesia. Vanderlei Teixeira Batista foi a julgamento e condenado a 18 anos de reclusão pelo Tribunal do Júri Popular, em Imperatriz, no dia 24 de junho de 1993. A sentença, que recebeu o título de “Vistos etc.”, assinada pelo juiz da 2ª Vara Criminal, José de Ribamar de Castro Ramos, encerra o processo de número 78/93. “Vistos etc.” é uma decisão judicial peculiar porque não há registro anterior de outra que tenha sido proferida em versos no estado.
“Sou juiz, não sou poeta/ Mas faço verso e canção/ Na beira do Tocantins/ Imperador da região/ Hoje em forma de poesia/ Vou proferir esta decisão”. Assim começa a sentença do juiz Ribamar Ramos, mais conhecido como Baial. Os versos causaram estranheza entre os membros do conselho de sentença, o advogado, a promotoria, o próprio réu e a comunidade. Ninguém esperava que do julgamento de um crime bárbaro pudessem sair rimas.
Baial, hoje juiz aposentado, conta que a ideia inicial de proferir uma sentença em versos não foi bem digerida por seus colegas de magistratura. Naquele mês de junho, Baial havia participado de 16 júris e as sentenças em prosa, segundo ele, já não despertavam inspiração alguma. Restava, porém, a dúvida sobre a legalidade da sentença em verso. Depois de algumas consultas bibliográficas, decidiu apostar na força da métrica. “Se não há nada que proíba, por que não arriscar?”, ponderou à época.
Poeta é quem se considera
Ao longo da poesia o juiz vai construindo a sua sentença. Ainda nos primeiros versos ele dá o tom da decisão: “O réu em seu ato criminoso/ Feriu artigo do Código Penal/ Sendo, portanto, denunciado/ Pela sua ação ilegal/ Tirando a vida do semelhante/ Sem motivo para tal”. Baial apresenta na peça todos os ingredientes exigidos por lei, como relatório, fundamentação e dispositivos. Tece a pena baseando-se no artigo 121 do Código Penal e ainda abre uma fenda para o lamento. “O dolo foi intenso/ Praticado sem piedade/ Mediante pagamento/ Com requinte de crueldade/ Oh! Meu Deus que mundo cão/ Para quê tanta maldade?”.
Baial diz não ter ficado preso a estilos quando da criação do verso – ou da redação da sentença. Foi uma inspiração de momento, segundo relata, “que não coube a métrica perfeita”. Poetas populares mais exigentes dirão que a peça de Baial está cheia de “pé quebrado”. Há um fio tênue entre o cordel e o repente, na avaliação de estudiosos como a professora Marlyse Meyer. O poeta de cordel, também conhecido como poeta de banca, é mais dado a exigências na métrica, o que já não acontece com o repentista – ou cantador de viola. Este prende ou solta a voz no momento conveniente para acertar, macio, a rima e empolgar o espectador. Já o leitor de cordel quer a precisão da rima no ato, ou seja, os versos de uma estrofe devem coincidir no número de sílabas. Faltou uma sílaba, caiu no “pé quebrado”, algo imperdoável para o homem simples do interior nordestino, exímio conhecedor do poema de banca.
“No salão deste plenário/ Dou a presente por publicada/ Às dezenove e dez minutos/ E as partes intimadas/ Registre-se e comunique-se/ A sessão está encerrada”. Nesta estrofe, com a qual Baial conclui a sentença, há versos de oito, nove e dez sílabas. O segundo, o quarto e o último versos não coincidem no número de sílabas. Nas 29 estrofes de “Vistos etc.” há trechos de seis, sete e oito versos - predominam as sextilhas.
Se pisou na métrica, Baial não sabe dizer. Afirma que à época não conhecia a regra. O certo é que o juiz poeta conseguiu o que queria. A sentença virou notícia e entrou para a história. José de Ribamar de Castro Ramos figura hoje entre os poucos magistrados brasileiros que ousaram na pena. A inspiração ele diz ter brotado de suas andanças pelo interior do Maranhão e do canto pungente de Patativa do Assaré. Nasceu em Barreirinhas e, como juiz, morou em Urbano Santos, Penalva, Vitorino Freire, Imperatriz, Santa Inês e São Luís. Deixou a comarca de Imperatriz depois de conduzir processos polêmicos. Ele foi o responsável pelo julgamento dos envolvidos no assassinato do prefeito Renato Moreira; e reabriu, 10 anos depois de interrompido, o caso da morte do padre Josimo Tavares. “Muita gente foi presa e tive de deixar a cidade após algumas ameaças de morte”.
O passo seguinte foi Santa Inês. Lá, o advogado Leonel Marinho, conhecendo a fama do juiz poeta, decidiu partir para a provocação. Ao ser procurado pela cliente Arlete Gama de Lima, que pretendia receber do ex-marido pensão alimentícia para o filho, Marinho abriu mão da prosa e resolveu versejar na petição. “A maior ignorância do homem/ Além de romper a aliança/ É fazer pirraça com a ex-mulher/ Impondo-lhe uma vingança / E inclusive fazendo sofrer/ Uma pobre e indefesa criança”. O advogado queria, na verdade, despertar a veia poética de Baial, que não se fez de rogado e soltou o verbo no despacho: “Fixo os alimentos provisórios/ Em 20% do salário do requerido/ De seus rendimentos integrais/ E tudo mais que é devido/ Devendo de seus vencimentos/ Todo mês ser abatido”.
E o “desalmado” Vanderlei? Distante da poesia daquele amargo São João de 1993, hoje cumpre o restante da pena em regime semi-aberto. Durante o dia tenta a vida como vaqueiro no Parque Independência e à noite segue para dormir em Pedrinhas, na companhia de outros sentenciados.
Versejar: verbo intransitivo
Os versos na seara do Direito ainda são parcos e somente alguns ganharam registro definitivo na memória popular, como é o caso de um pedido de habeas corpus para um inócuo violão. Em 1960, um juiz da cidade de Campina Grande, na Paraíba, decidiu proibir as serestas que se estendiam até altas horas da noite. Numa madrugada daquele ano, a pedido de beatas insones, o delegado resolveu cumprir a medida judicial e levou presos um seresteiro incorrigível e o seu violão. O boêmio conseguiu safar-se da cadeia no dia seguinte, mas o delegado decidiu manter o violão atrás das grades.
“Todo mundo na Paraíba conhece essa história”, diz, orgulhoso, o ex-governador paraibano Ronaldo Cunha Lima. Em 1960 ele era apenas um jovem advogado em começo de carreira, tão boêmio quanto o seresteiro transgressor. Por conta de sua intimidade com a noite e a boêmia, Cunha Lima fora convidado para defender a causa do seresteiro, inconsolável com a prisão do violão.
Cunha Lima entrou com uma petição pitoresca na Segunda Vara da cidade, denominada “Habeas pinho”. Com argumentos de deixar qualquer juiz suado na toga, o advogado invocou inspiração e desferiu 10 implacáveis estrofes. “O instrumento do crime que se arrola/ Neste processo de contravenção/ Não é faca, revólver, nem pistola/ É simplesmente, doutor, um violão”. No sétimo ato o advogado implora: “Mande soltá-lo pelo amor da noite/ Que se sente vazia em suas horas/ Pra que volte a sentir o terno açoite/ De suas cordas leves e sonoras”. O juiz, diante da petição, não teve outra escolha. Recorreu à poesia e, em verso ligeiro, decidiu pela “soltura” do violão.
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Gostei de seu artigo e principalmente do tema abordado. Acho super dez o turma do tribunal sentenciando em forma de poesia. Vejo o dureza da lei misturando-se a suavidade da poesia.
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