Canção do abandono, publicado em 1953 e relançado nesta sexta-feira numa engenhosa iniciativa de Jomar Moraes, não é um canto nem um conto tupi como muitos outros nascidos da imaginação e da sensibilidade de Olímpio Cruz. Não se trata ainda do canto da selva, que ecoaria em 1981, mas do clamor inaugural do coração do poeta, enredado em sertões e solidões. Quase sessenta anos depois, Canção do abandono ressurge agora numa edição que principia o alvissareiro ciclo de publicações conjuntas das editoras Clara e Legenda.
O livro, diferentemente do que faz crer a simplicidade do poeta no seu soneto de partida Solfejos, vai muito além dos “rápidos arpejos”. Em Canção do abandono, Olímpio Cruz canta com a alma e, como quem devassa a própria morada, bamboleia entre o quarto escuro das ligeiras desventuras e o quintal com vista para o bailado das colinas.
Ora o poeta é o cantor da soledade, triste, espichado num rapel escalando a “dor do seu calvário”. Improvável não se entregar a fartos goles na taça de amargura servida pelo autor entre um verso e outro. Ora o poeta é puro galanteio, cativante e sereno, com suas musas, deusas, sereias, aparecidas e outros pretextos. Canção do abandono é também o rito de entrega regrada, o ato de contrição comedido, mas alvejante na sua essência. O poeta mira na delicadeza – “Seja feita a vontade dos teus olhos...” – e se aninha no precipício das paixões, “...onde mais luzem círios estelares”.
Mas não basta ler a poesia de Olímpio Cruz. É preciso saber da sua origem, do pedaço de chão pisado. Canção do abandono tem também o cheiro de Barra do Corda, das ruas e dos rios, das verdes tranças, da dança das cachoeiras “bordando o chão de espuma alvinitente”. Ninguém cantou tão longe a cidade como Olímpio Cruz, no alto do cruzeiro que protege a gente cordina ou no lume dos faroletes que se multiplicam no silêncio da noite.
O bardo da Barra entoa, altissonante, a ode à terra, ao barro e às águas. Não é preciso mergulhar no rio Corda para compreender a sinfonia do seu curso. A poesia de Olímpio Cruz é a própria correnteza do Corda a serpentear na aldeia até se fingir Mearim:
- Esbarro aqui, às portas da cidade,
Onde suspiro cheio de saudade,
E morro me abraçando ao Mearim...
Barra do Corda é a joia rara do poeta, o “ninho risonho pelo sol beijado” descrito por Olímpio Cruz que inspira gerações, recebe caravanas e romarias e transforma a poesia em hino oficial da cidade. Por tudo isso e mais um pouco, o livro Canção do abandono reaparece atual, envolvente, revelador, como se vivo estivesse o homem interiorano do mundo, o encantador de índios, o sertanista renitente, o pacificador, o missionário precursor da bandeira verde.
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