segunda-feira, 28 de julho de 2025

Rua 28 de Julho – onde quase tudo é desterro

Socorro de Sena em frente ao Bar Meu Bem, na rua 28 de Julho, Centro

No calendário, o dia 28 de julho acende o “orgulho cívico” do Maranhão: a data em que a então província, hesitante e orgulhosa, enfim aderiu em 1823 à Independência do Brasil. Mas, em São Luís, o nome também habita o chão, gravado nas pedras de uma rua do Centro Histórico que carrega, no corpo de ladeira e azulejos, outra espécie de libertação: a da vida noturna, da música alta, do riso fácil e das mulheres que fizeram daquele território um palco de resistências e desejos.

 

A rua 28 de Julho, também conhecida como rua do Giz, é um corredor de memórias que sobrevive ao sol e ao sal da ilha. O bairro do Desterro, de onde ela brota, nunca foi apenas geografia: foi refúgio e trincheira. Durante décadas, entre os anos 1940 e 1980, o casario colonial testemunhou uma fauna urbana intensa: boates, cabarés, casas de prostituição e bares onde artistas, intelectuais, funcionários públicos e empresários dividiam mesas com prostitutas e marinheiros, todos unidos pela mesma fome de madrugada. Ali, a ZBM, a malafamada Zona do Baixo Meretrício, pulsava com o coração descompassado da cidade, enquanto na praça vizinha os sinos da igreja batiam o outro lado da vida.

 

Ainda hoje, quando a noite cai, parece possível ouvir o eco das vozes que se perdiam pelo beco. Há uma espécie de magnetismo que mistura decadência e charme, algo que as paredes úmidas não escondem: manchas de histórias que resistem ao tempo e às restaurações turísticas.

 

No número 426, o Bar Meu Bem é uma cápsula dessa boemia sobrevivente. Simples, com suas paredes decoradas por fotos de família, bandeirinhas de São João, pôsteres de Ivete Sangalo e Grazi Massafera, máscaras de cazumbá e frases de caminhão que parecem ter parado ali para descansar, o bar serve uma cerveja que, dizem os fiéis e a placa estampada na fachada, é a mais gelada da cidade. Dona Socorro de Sena, 65 anos, é quem segura o balcão e a memória. Foi ela quem, ao chamar a todos de “meu bem”, batizou o bar e a si mesma. Há mais de 20 anos, sua voz faz o contraponto suave aos fregueses que chegam ao fim da tarde, quando o reggae escorre das caixas de som e as primeiras mulheres aparecem, lembrando que a rua ainda sabe seduzir.


Vista interna do Bar Meu Bem

“Fiquei curiosa porque ela estava tomando uma cerveja e foi logo me chamando de meu bem, convidando-me para entrar”, conta Mariana Tsukamoto, professora da USP de passagem pela cidade. “Essa rua é charmosa e tem um protagonismo feminino que me encanta.” Mariana, sentada no batente da calçada, observa o movimento como quem lê uma história aberta: percebe que, muito antes da palavra “empoderamento” ganhar as redes sociais, aquelas mulheres já haviam escrito, com o próprio corpo, uma narrativa de autonomia, ainda que à margem de uma sociedade hipócrita, racista e seletiva.

 

Mariana, professora paulista em visita à 28 de Julho


A rua 28 de Julho é, no fundo, isso: um território que resiste ao apagamento. Entre o brilho dos azulejos e as sombras do passado, ela lembra que a independência, seja de um país ou de uma mulher, nunca se conquista de uma vez. É preciso defendê-la todos os dias, entre goles de cerveja, músicas que atravessam décadas e a coragem de permanecer onde muitos prefeririam que nada restasse.

 


Filhas do Desterro


Tudo é Desterro. Tudo é 28 de Julho. O sobrado de número 535 da rua da Estrela envelhece como uma ferida aberta. O tempo escorre pelas paredes. Ali, o que os mapas chamam de casarão é, visto por dentro, um cortiço, palavra antiga dos livros que nunca deixou de estar presente na realidade brasileira. 

 

Nove famílias comprimem-se em pequenos quartos, uma geografia precária onde cada centímetro sustenta biografias inteiras. No meio de tantas histórias está a de Maria de Jesus Costa, a Dijé, preta, 67 anos, três filhos, uma neta, quase três décadas de permanência.


Maria de Jesus, a Dijé, sob ameaça de despejo


Permanência que agora é ameaça: herdeiros de Elizete Mendes Cateb (por meio do inventariante Mauro Costa Mendes Cateb) exigem o imóvel de volta, e o processo arrasta-se pelos tribunais com a lentidão dos que não precisam de urgência. O recado, no entanto, já chegou: até dezembro, todos terão de sair. Depois, o casarão será posto à venda. À venda! Um lugar que jamais teve dono visível agora exige papéis, registros, carimbos.


Fachada do casarão da rua da Estrela, no bairro do Desterro


Dijé não fala disso enquanto mexe o molho da macarronada. Não tem tempo. É sábado, 26, e 100 quentinhas precisam ser entregues a pessoas que ela insiste em não chamar de “moradores de rua”. Só voltamos a nos falar no dia seguinte, agora com mais tempo, sentados na calçada da Cafua das Mercês. 

 

“Não é preciso estar na rua para sentir fome”, diz. “A pandemia da Covid deixou outra, mais funda: a pandemia da miséria. Gente sem casa, sem trabalho, sem cabeça.” Já tem alguns anos o grupo Terça Nobre cozinha, distribui, resiste. No Desterro. É uma forma de dizer: estamos aqui, mesmo que ninguém queira ver.

 

Conheci Dijé em agosto de 2006, durante o I Encontro Regional Norte/Nordeste de Profissionais do Sexo Feminino, no Convento das Mercês. Ela estava ali no início das lutas, abrindo caminhos. Voltei a encontrá-la agora por indicação da amiga Helena Galiza, arquiteta e árdua defensora do patrimônio arquitetónico e de um projeto de habitação popular do Centro Histórico de São Luís.   

 

Quase um século e meio depois de publicada a primeira edição de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, a cena repete-se em outra cidade: um casarão antigo, gente pobre, gente preta, a engrenagem da exclusão girando intacta. O ambiente que moldava destinos no romance do escritor maranhense, no Rio de Janeiro do século XIX, ainda persiste: quem não tem endereço não tem documento, não tem emprego, não existe. “Moradia é direito, não favor”, diz Dijé. “Sem gente morando, o Centro Histórico vira fachada morta. Para que ele viva, precisa de nós.”

 

Palavras no corpo


Pelas ruas do Desterro há regras que nenhum decreto escreveu: mulher não pode apanhar; filho não ergue a mão contra pai; idoso não é para ser violentado. Uma disciplina mínima e severa, nascida da falta. O Estado não chega, então criam-se leis próprias. A sobrevivência impõe sua própria moral.

 

Maria de Jesus carrega no corpo marcas mais antigas que o casarão. Aos 12 anos, foi abusada por quem deveria protegê-la. “Não tive infância. Era um tempo em que o homem podia tudo, e a vítima era sempre culpada.” Ela diz sem hesitar, sem suavizar, mas também sem pedir absolvição. Transformou a dor em ferramenta: presidiu a Associação das Profissionais do Sexo Feminino do Maranhão (Aprosma), coordena há dez anos a Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores do Sexo (CUTS) e ajudou a fundar o Coletivo Por Elas Empoderadas, com ativo perfil nas redes sociais. 

 

A prostituição, que lhe fora estigma, tornou-se bandeira.

 

“Eu não tenho problema com a palavra prostituta”, afirma. “Mas hoje há outros nomes: trabalhadora do sexo, profissional, acompanhante. Muitas fazem ‘jobs’, usam plataformas digitais, cuidam da própria segurança. O mundo mudou, e nós também.”

 

Dijé aprendeu a endurecer sem perder a ternura. “No nosso Coletivo, não se admite que mulher apanhe, que homem trepe e não pague, que profissional seja tratada como lixo. Elas têm de ocupar o lugar que escolherem. E informação errada não passa. Somos intocáveis.”

 

O Desterro, que já teve ruas dedicadas à prostituição, viu essas mulheres migrarem: Oscar Frota, Anel Viário, São Cristóvão. Mas Dijé ficou. Ficou no mesmo casarão que agora quer expulsá-la. Sabe que sua permanência é mais que disputa por paredes: é disputa por existência.

 

Porque antes de ser morada, seu corpo foi território de homens. Hoje é também trincheira. O cortiço pode ruir, o despejo pode chegar, mas há uma diferença: desta vez, há voz. E a voz de Maria de Jesus Costa não é eco de parede envelhecida. É pedra lançada. Ela não está mais sozinha. E não tem vocação pra desterrada.   

sábado, 19 de julho de 2025

De volta à casa

 

Voltar a Barra do Corda, depois de tanto tempo, foi como abrir uma velha caixa de brinquedos esquecida no sótão da vida. A poeira das décadas não conseguiu embaçar o brilho das lembranças. Pelo contrário: ao reencontrar a cidade onde vivi os primeiros doze anos da minha existência – os mais puros, talvez os mais felizes – tudo me pareceu ainda mais nítido, como se o tempo tivesse feito questão de preservar, com zelo, cada susto, cada rua, cada cheiro.

 

Nasci em Presidente Dutra, é verdade, mas foi em Barra do Corda que aprendi a caminhar pelo mundo. E caminhar por suas ruas, agora, mais de vinte anos depois da última visita, foi como reconhecer o próprio rosto no espelho: os traços estão lá, mas há rugas novas, silêncios outros, um jeito diferente de dizer o mesmo nome. Fui a Barra como integrante da Caravana da Academia Maranhense de Letras – mas voltei como filho, como menino, como memória que se reencontra com o próprio berço. De quebra, ainda recebi o título de Cidadão de Barra do Corda. Algo que já havia dentro de mim, e agora está em papel passado.

 

Não consegui esconder a emoção ao subir, mais uma vez, o alto do Calvário. A cidade, lá embaixo, se estendia como uma confissão: nua, sim, mas ainda enfeitada por aquele laço alaranjado que o entardecer costuma atar entre céu e telhados. Vi-me menino outra vez, correndo com os pés descalços pelos caminhos de barro, observando a vida passar como um rio. E lá estavam eles – o Mearim e o Corda – ainda enamorados, ainda se encontrando como se fosse a primeira vez, no Porto Guajajara. Um milagre cotidiano que, aos olhos da infância, parecia eternidade.


 

Entrei na Igreja Matriz com o coração indomável. Ali fui coroinha. Ali toquei sinos como quem rege os próprios sonhos. Era a orquestra da minha vida – desafinada às vezes, mas sempre ruidosa, distraída. Alegre. No alto da torre, um menino franzino comandava os sinos com a autoridade de um maestro de calças curtas. E era como se, naquele tempo, toda a cidade me ouvisse.

 

Houve também reencontros de carne e osso, como com dona Oclair, velha amiga da minha mãe, sentinela da memória atrás do balcão do seu armazém de secos e molhados, ainda de pé, ainda altiva aos 93 anos. Visitei a memória do jornal O Pássaro, nascido das mãos inquietas e letradas de meu saudoso irmão Antônio Carlos, impresso em mimeógrafo, com tinta e sonho, na última quadra dos anos 1970. E ouvi relatos que me fizeram lembrar as tertúlias do Clube Guajajara, com a banda Os Populares do Ritmo e as amigas de minhas irmãs em vestidos floridos, girando pelo salão.

 

Matei a saudade andando devagar, olhando para tudo com os olhos de agora e o coração de antes. A praça Melo Uchôa, hoje em obras, tentava esconder-se atrás dos tapumes, como quem esmorece ante a involução dos tempos. As ruas, antes calçadas de pedra, agora cobertas de asfalto, pareciam estranhas, mas não hostis. O convento dos frades capuchinhos, o Colégio Pio XI, o prédio da Funai... todos com novas fachadas ou simplesmente ausentes. A arquitetura da infância, onde o mundo cabia inteiro, agora reformada, redesenhada ou apagada.



Sim, o mundo mudou. Barra do Corda mudou. E eu também. Mas há algo que permanece: o silêncio cheio de sons da memória, a saudade que tem cheiro de terra molhada pela neblina nas noites de julho, o menino que ainda habita em mim e que, por alguns dias, voltou a correr sobre a piçarra e a se jogar nas águas frias do rio Corda no descuido generoso de uma tarde de calor.  

 

Não sei se foi uma visita ou um mergulho. Só sei que voltei mais inteiro. Como quem toca as margens do próprio umbigo e entende que o tempo, como os rios, dá muitas voltas antes de se perder por aí. De mar em mar. 




quinta-feira, 17 de julho de 2025

Almanaque Guarnicê, uma ponte de ida e volta aos anos 1980


 

Há livros que nascem no tempo certo. Outros, como o Almanaque Guarnicê (Clara Editora/Edições Guarnicê), preferem o desvio, a dobra, o atraso que dá sentido à memória. Publicado em 2003, vinte anos depois do nascimento da revista que o inspirou, o almanaque é menos um compêndio e mais uma pulsação remanescente de uma juventude que resistiu – e existiu – no momento em que a ditadura começava a soltar as rédeas de sua mão de ferro.

 

Guarnicê, suplemento cultural que estreou encartado no jornal O Estado do Maranhão em plena temporada de descompressão política, não era só um projeto gráfico, jornalístico ou literário. Era também um gesto coletivo de ousadia. Um levante de criatividade em tempos nos quais a esperança e o sarcasmo dividiam a mesma mesa de bar. 

 

Na edição de estreia, os editores do Guarnicê carregavam nas páginas o brilho do improviso, da cultura esfacelada, do risco como linguagem. E esse brilho, como que por teimosia, ressurgiu duas décadas depois impresso nas páginas do almanaque, como se fosse possível escutar ali as gargalhadas ao fundo, no canto do olho do texto.

 

Escrever sobre essa história – que não é apenas uma sucessão de edições, mas um estado de espírito – foi uma experiência que me devolveu o frescor do tempo em que tudo ainda era quase possível. Havia um fôlego juvenil, sim, mas também uma lucidez intuitiva combinada com uma anarquia despretensiosa e disruptiva: sabíamos que estávamos registrando uma época e, ao mesmo tempo, intervindo nela. A reportagem que costura o Almanaque Guarnicê fora empreendida com a leveza necessária para não aprisionar em categorias o que é essencialmente movimento, fluxo, inventividade.

 

A narrativa não segue ordem cronológica. Nem poderia. Seria uma traição à alma errante da revista. Os relatos, entrevistas e registros se distribuem como num caleidoscópio. Tudo se move: os nomes, os sons, as imagens. O leitor caminha entre as colunas tortas de uma São Luís que era, simultaneamente, palco e personagem, território e teatro. Ideia e aldeia. Está tudo lá. Ou quase tudo. Laborarte, Pedra de Cantaria, Rabo de Vaca, Projeto Pixinguinha, Maria Aragão, Rock in Rio, Diretas Já, Projeto Grande Carajás, Boi Barrica, Marimbondos de fogo, Aza do Maranhão, Madre Deus, Mirante FM, Chacal, Poeme-se, Baú de Cartuns… E tantos outros sopros que formaram o espírito de uma década marcada pela distração e pelo desejo de mudança.

 

Almanaque Guarnicê não é arqueologia. Não há resgate! Há arte de montagem. O livro tenta compor/recompor um tempo que insiste em permanecer vivo em quem dele tirou uma casquinha, um fino – ou em quem, mesmo sem ter vivido, se reconhece em suas entrelinhas. A ilha, no almanaque, é só uma máquina de edição. Um território onde o passado se mexe, como escrevi no prólogo, e recusa o silêncio.

 

A entrevista-chave com os idealizadores do Guarnicê – Joaquim Haickel, Celso Borges, Roberto Kenard, Paulo Coelho e Érico Junqueira Ayres – é o eixo por onde passam muitos dos fios dessa tapeçaria oral e afetiva. Ali se cruzam o jornalismo, a poesia, o cinema, a política, as artes gráficas, a trama, o drama, a ironia. Aquela ironia que nos mantinha a salvo da resignação.

 

Nas palavras de Mário Prata, que prefacia a obra, essa turma foi feita da matéria mais improvável e necessária: “sobreviventes do velho ofício de transformar o banal das conversas de botequim em bacanal de ideias, de extrair poesia do miolo de pote, de subverter o traço para alcançar o riso...”. Isso não é hosana. É confissão.

 

O texto relaxado fazia do Guanicê uma armadilha precária, subversiva. E essa precariedade era condição da liberdade. A ausência de recursos, longe de limitar, alargava a criatividade. A revista se fez com o que havia – e, sobretudo, com o que não havia: verba, patrocínios que não vingavam, mas exigiam espaço – às vezes no lugar de um poema.

 

E, ainda assim, o Guarnicê floresceu. Como planta que nasce no asfalto. Teve altos e baixos, acertos e desastres. Às vezes errático, às vezes certeiro, o suplemento oscilava entre a limitação dos meios e o excesso de ideias. Produziu 45 edições num tempo em que a precariedade era regra. Mas isso nunca garantiu coerência editorial nem propósito claro. E talvez aí resida o que foi a revista: um corpo em trânsito, atravessado por tensões, colagens e improvisos.

 

O livro Almanaque Guarnicê não foi (e não é) um projeto de continuação ou celebração. Está mais para um documento feito com os restos que o tempo não apagou. Um esforço para entender o que havia ali  nas entrelinhas, nos ruídos, nos impasses e também nos lampejos. O almanaque recompõe um percurso fragmentado, sem costura definitiva, e talvez só funcione mesmo como um exercício de leitura lateral da época.

 

Não há lição, nem modelo a seguir. O que o almanaque oferece é uma travessia possível por um tempo em que se escrevia com mais urgência do que método, mais desejo do que direção. E isso, longe de heroísmo, é só matéria bruta da aventura da juventude. O resto é lenda.