Muitos livros nos seduzem nas prateleiras de sebos e livrarias ou pelos atributos do autor ou pelo tema abordado ou pela arte da capa ou pelo título. Para alguns leitores, o vigor do título é o visgo. Foi o título de O ódio pela poesia que me chamou a atenção para a leitura da obra do norte-americano Ben Lerner. Um texto provocativo que explora a paradoxal relação de amor e ódio que leitores, não leitores e até poetas nutrem pela poesia.
Publicado originalmente em 2016, em Nova Iorque, e só agora editado no Brasil pela editora Fósforo, com tradução para o português do poeta Leonardo Fróes, O ódio pela poesia é um ensaio que de saída, com base apenas na leitura do título, suscita algumas indagações: o que distancia a poesia do grande público? quem tem tempo pra poesia num mundo atravessado pela linguagem instantânea da sociedade digital? como é possível gostar de algo tão etéreo e que não faz parte da nossa cesta de consumo?
Numa época em que nos “acostumamos” a conviver com o ódio através das telas dos smartphones, é quase natural que poucos confiem (ou alimentem algum tipo de expectativa) na poesia. Em meio aos enfrentamentos políticos forjados na polarização e, em alguns casos, no vazio das ideias, nos Estados Unidos, no Brasil e em outros cantos do mundo, quem vai apostar na poesia? Quem haverá de se servir do mel da poesia?
Há uma desconfiança deliberada no ofício do poeta. “Ofício”, aliás, que soa até exagerado para quem enxerga de soslaio um poeta. “Poesia numa hora dessas?”, o hiperbólico ponto de interrogação de Luís Fernando Veríssimo, talvez seja a senha mais escrachada que justifique, aqui e ali, a resistência à poesia.
Alguns cultuam a poesia em segredo, outros a escanteiam com desprezo solene. Poucos se arriscam a defendê-la em público sem parecer antigo, ridículo ou intelectualmente delirante. E talvez seja com base nesse constrangimento coletivo – nesse “ódio com afeto” – que Lerner transforma o brevíssimo O ódio pela poesia (74 páginas) em cardápio útil para quem amarga a ambivalência de amar e odiar a poesia ao mesmo tempo.
Além de recorrer a críticos de literatura, Lerner, que também é poeta, bebe na fonte de Sócrates, Emily Dickinson, Walt Whitman, Charles Olson, Rimbaud, Charles Baudelaire, T.S. Eliot, Ezra Pound, Sylvia Plath, Claudia Rankine e outros para explicar a sua linha de pensamento. “Eu, também, não gosto de poesia, mas em grande parte organizei minha vida ao redor dela”, diz o autor.
Ele menciona, por exemplo, o ensaio de Platão em A República, no qual o filósofo expulsa os poetas de sua cidade ideal, argumentando que eles corrompem a juventude e distorcem a verdade. Também recorda as críticas de Thomas Love Peacock e a famosa investida de Adorno ao afirmar que “escrever poesia depois de Auschwitz é um ato de barbárie”, uma declaração que reflete a tensão entre a arte e a realidade brutal da história.
Lerner começa seu livro com uma constatação incômoda: odiamos a poesia porque ela nos promete o absoluto, a universalidade, mas não alcança. O poema é sempre menor que aquilo que poderia ou pelo menos deveria ser. Existe, segundo ele, uma lacuna intransponível entre a “poesia ideal” (sublime, transcendente, perfeita) e a “poesia real”, que tropeça na linguagem, nas formas, nas leituras. O poema, no fundo, é a crônica de um fracasso anunciado.
Mas é um fracasso glorioso.
Ao revisitar figuras históricas que desprezaram a poesia e poetas que foram ignorados, censurados ou taxados de excêntricos, Lerner não tenta absolvê-los. Em vez disso, ele se diverte com o paradoxo: a repulsa à poesia é o combustível secreto da própria poesia. O desprezo é também um tributo. Só se odeia aquilo que nos confronta. Odiar poemas, segundo ele, pode bem ser uma espécie de “fúria defensiva contra a simples sugestão de que outro mundo, outra escala de valor, é possível”. Odiar a poesia talvez seja um truque honesto para tentar desvendá-la, ainda que minimamente.
O autor escreve com leveza e sarcasmo, sem perder a profundidade. A tese de Lerner parece simples — a poesia falha, e é nisso que reside sua força —, mas de uma potência inventiva, cheia de atalhos e pontes improváveis entre o clássico e o contemporâneo, entre o universal e o particular.
A tese impõe-se contra o mito. Contra a ideia de que todo poema é uma parábola. Um oráculo. Uma flor no caos. A poesia, diz Lerner, nasceu com um defeito de fábrica. E ainda assim nos seduz. Por isso a raiva. Por isso a resistência.
O livro não se destina apenas a escritores, aspirantes a poetas, críticos e estudantes. “O ódio pela poesia convida os que se sentiram excluídos, levados a crer que a poesia não é para eles, a compreender seu desprezo, e reconsiderá-lo, sem uma defesa moralista de que ler poemas é algo bom ou que nos torna melhores”, diz o texto de apresentação de Stephanie Borges.
Improvável não trazer a lume, a partir dessa leitura, a poesia que brota de contextos periféricos e que, exatamente por isso, foi muitas vezes rejeitada. Alguns poetas maranhenses, por exemplo, foram desacreditados em seu tempo. Sousândrade, visionário do século XIX e precursor do modernismo brasileiro, escreveu O Guesa em linguagem experimental, rompeu com padrões e fora incompreendido por muitos de seus contemporâneos, que o acusaram de hermetismo e delírio.
A poesia de Nauro Machado é vista ainda como hermética, de difícil interpretação. E a obra de Bandeira Tribuzi talvez nunca tenha alcançado o reconhecimento do valor intelectual e da dimensão lírica que de fato ela possui.
Dessacralizar o papel da poesia tem sido um desafio raro, engendrado em alguns núcleos de discussão e leitura, em blogs, portais de internet e podcasts espalhados pelo Brasil. Em São Luís, exemplos de boas iniciativas que dissecam a poesia – não como totem, tabu ou rotina missionária, mas como exercício da fala, seguindo o rito da poesia como imperfeição possível – são os encontros Reverso e Sarau das Mercês, ambos realizados mensalmente.
Reverso, que conta com o entusiasmo de Eduardo Júlio, Adriana Gama de Araújo, Fernando Abreu, Luís Inácio Costa e outros, elege a cada encontro aberto um poeta para discussões livres sobre vida e obra e leitura em voz alta de poemas do bardo da vez. O Sarau das Mercês, idealizado pela poeta Laura Amélia Damous, no Convento das Mercês, convida a cada edição poetas para lerem poemas e falarem de suas obras. Além disso, correm pelas beiradas os grupos de slam, a poesia de rua que a cada dia ganha mais força em aglomerados urbanos da capital maranhense. Esse recorte regional que aqui faço não está inserido no livro de Lerner, mas pode ser pauta de uma próxima prosa.
O autor de O ódio pela poesia, em sua escrita quase apocalíptica, mas necessária, nos lembra que o poema nunca será aquilo que prenuncia. E também nos diz, com uma boa dose de ironia, que isso não importa. Tanto faz! A poesia não precisa vencer o leitor. Basta que ela resista. Basta que continuemos escrevendo. E lendo, ainda que com toda a falha.
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