quinta-feira, 25 de abril de 2019

Filarmônica para fones de ouvido



Joãozinho Ribeiro
Poeta e compositor

Na antessala do dentista ou do urologista todo poeta sempre treme, ou se prepara pra ser um fingidor posteriormente, como profetizava o Pessoa. Estava numa destas situações, numa tarde do fevereiro último, levando comigo um exemplar do “Filarmônica para fones de ouvido”, que havia recebido de presente das mãos do próprio autor pela manhã, com direito a autógrafo e um pouco de cumplicidade compartilhada com o ineditismo da obra.

Com a mente impregnada de uma música do parceiro Zeca Baleiro, intitulada “Muzak”, preenchia o tempo de espera na antessala com a leitura dos versos cometidos pelo poeta Félix Alberto Lima. Àquelas alturas, tentava entender a sutileza de “estou aqui em Arari em Nova Iorque...”, da música. Não consegui me descolar da leitura, materializada numa espécie de decálogo, que o poeta arquitetou como divisão, para conduzir os leitores incautos, ou nem tanto, para um território em que a palavra sempre tem razão – o da linguagem dos sentidos.
Iniciando com DA LUZ NEGRA até o encerramento, com DO LINHO QUE HÁ NA PALAVRA. Entre o ponto de partida e aquele que deveria ser o de chegada não há tréguas poéticas, o que há são açoites, como na provocação inicial de AMOR DE NUNCA MAIS:

“O que vai durar não é o capricho/mas a pirotecnia/da paixão destrambelhada/um beijo da boca pra fora/sem gozo ou estardalhaço”

Açoites que não chegam a ferir, mas que parecem lamber algumas cicatrizes da existência comum, assim como um cimento a colar os caquinhos das paixões ensandecidas de outrora; substituídas, hoje, pela mansidão manifesta na contemplação de um cais, acariciado pela sinfonia das vagas errantes.

A palavra que nos apedreja também comete inusitados afagos na poética de Félix, e distribui afetos, a barganhar alguma peraltice de meninos marotos, cantarolando CANTIGA DE RODA e de rodar as águas da memória:

“Ovo não tem pelo/alma não tem pena/aqui nesse pé de página/o macaco pula/e a pomba gira/é a ciranda do poema”

É da memória, talvez de uma gaveta entreaberta, esquecida no tempo, com cheiro das águas de infância e saudades, que o poeta resgata e costura uma das paisagens mais bonitas em MEMÓRIA AO REDOR DA CASA...

“Há um velho/na cadeira de balanço,/uma coleção de relógios/tristes sobre a mesa da sala/e o tempo fustigando/samambaias/suspensas nos cobogós”

O elemento vazado, pra efeito de decoração e carinho das samambaias, parece costurar também na tarde que frequento, na antessala do consultório médico, todas as possibilidades que a poesia ainda é capaz de introduzir em nossas almas céticas e desencantadas. Assim como atesta a existência de “...um ponto cego entre um ouvido e outro”, extraído DO OCO DO MUNDO.

De Arari a Nova Iorque, o Muzak da antessala agora se traduz em outras geografias e distâncias poéticas, percorridas pelo autor; de Barra do Corda a São Luís; de São Luís para o mundo, levando consigo toda a infinitude das estrofes, e a finitude da passagem por esta breve estação terrena. Na conversa DE ÁGUA E SAL tenta fixar uma espécie de pacto com os elementos, e se aventura nos desenhos, por ONDE CAMINHA O SOL À TARDE...

“abre uma página em branco na areia/percebe a imensidão de lamento no longo apito das/embarcações”

Do ofício de viver e dos seus diversificados vícios, difícil encontrar exatidão geométrica nas escolas literárias para enquadrar estilo ou métrica das construções concentradas no canteiro desta obra inacabada denominada “Filarmônica para fones de ouvido”. Em alguns momentos nos insere em sonetos, como em TUDO ERA QUIMERA...

“essa canção que toca no rádio agora/bem que poderia falar do nosso amor/do primeiro bilhete deixado no guardanapo/molhado pela chuva de tanto desejo”

Tarefa ingrata essa reservada a um poeta, falar da poesia e de uma determinada obra de um outro poeta, desafiando os mistérios e os limites, dos quais Goethe já nos alertava, ao descrever sua relação com a sua própria elaboração criativa: “O início e o fim de toda atividade literária é a reprodução do mundo que me cerca por meio do mundo que está dentro de mim.”

A tarde vai trucidando as horas, e eu vou mergulhando num Rio Corda imaginário, na inútil tentativa de decifrar este mundo reproduzido pelos versos do poeta Félix Alberto Lima, provocando as nascentes que estão dentro de mim e dele, como O TEMPO DEPOIS DO ALUVIÃO...

“a vida era quase um bolero/nos arrebóis dos olhos do menino/que via estrelas correrem sem pressa/no céu do seu primeiro ano ginasial”

No livro que está exposto à minha frente, diante dos meus olhos de poeta, os versos irrompem como as águas de uma barragem recém rompida e preenche todos os espaços da antessala, fazendo com que fiquem despercebidos todos os objetos e pessoas que estão compartilhando o lugar comigo.

A chuva castiga lá fora, inundando as ruas, as pedras e as ladeiras da cidade, anunciando os rigores de um inverno, tempo propício para a embriaguez de versos, tal como avisa o poema RIBAMARES...

“chove a essa hora da manhã/na rua duvivier/chove em volta do apartamento/chove dentro da sala/no vão de uma calçada qualquer/em são Luís”

Estamos no ano de 2019, que carrega consigo signos indecifráveis e sombrios, a poesia se faz mais do que necessária para expurgar milhões de demônios que regateiam as almas dos poetas. Com todo o afeto das canções, que por vezes nos separam e mais generosamente nos unem, o poeta se revela em MEU LADO ALADO, com a precisão de um menino, armado de baladeira pra não deixar de ser de aqui e de agora, e de todos os tempos repassados da memória...

“sou mais passarinho/que cometa/vivo entre coisas/e isso me basta/sou da terra e me alimento das águas/e do mato/rasgo o céu e me farto/na imensidão”

Com certeza, nem moderno nem eterno, apesar de o terem declarado imortal, o poeta seguirá combinando essas pequenas diabruras poéticas, do seu quintal ludovicense para as avenidas do universo, sem direito a um último BACKUP...

“não sou de vergar./se for preciso/eu ponho/o meu poema/na nuvem,/engulo teu sorriso/de mil likes/encomendados/e sumo por aí.../pode apostar./e aí eu quero ver:/sofrer/será teu próximo post”.

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