sexta-feira, 19 de abril de 2013
Um grito de alerta pelos Awá Guajá
Não queria sair da universidade com aquela sensação de quem ao final de tudo resumiria a vida acadêmica, como era de praxe, ou continua sendo, sei lá, numa laudatória monografia recheada de citações dispersas e de correntes teóricas que não saciavam a sede do meu entusiasmo pelo jornalismo. Eu queria mais. Queria compensar um tempo perdido ou talvez justificar os dez anos cheios de hiatos deixados por greves, pela militância no movimento estudantil e por uma assiduidade pífia em sala de aula em razão dos compromissos profissionais assumidos desde muito cedo. Decidi então que escreveria não uma tese costurada por aspas de gente que jamais li, mas um livro reportagem. Fui o primeiro a correr o risco no curso de Comunicação Social da UFMA, a enfrentar o paredão de uma banca acostumada a julgar mais as referências bibliográficas penduradas em galhos de enciclopédias do que as ideias apanhadas do chão pelos próprios alunos.
Mesmo decidido a fazer um livro reportagem, me faltava ainda um tema instigante, uma história pra escarafunchar de verdade e me convencer do peso da responsabilidade de contá-la. Foi o amigo acreano Moisés Matias quem me falou pela primeira vez dos índios Awá Guajá. Falou pouco, me passou ideias vagas acerca de um povo das florestas do Maranhão que estava ameaçado de extinção. E tinha lido em algum lugar que eram índios nômades.
Pronto. Ali estava a pauta perambulando solta, quase virgem e afoita, à espera de uma atenção, de um afago. Moisés me dera a pista, troquei alguns dedos de prosa com o professor Nilson Matos, meu orientador no trabalho de conclusão do curso, disparei alguns telefonemas, marquei entrevistas e saí em busca de informações. Quatro meses de levantamento de dados, contatos com antropólogos e ativistas e mergulho em leituras. Formei um acervo de boas fontes, como o saudoso padre italiano Carlo Ubbiali, o antropólogo Mércio Pereira Gomes e o sertanista Sydney Possuelo, entre mais de quarenta pessoas entrevistadas.
A parte mais importante do trabalho era o encontro com os índios. Depois de algumas tentativas frustradas de receber autorização da Funai para entrar na área indígena dos Awá Guajá, em setembro de 1995 tomei o caminho da clandestinidade e, depois de uma viagem de trem até Auzilândia seguida de longa caminhada pelo mato e mais algumas horas de lancha por rios e igarapés, cheguei finalmente à aldeia Txipatxiá. Comecei então a decifrar, depois daquela primeira viagem, um recorte do mundo dos Awá Guajá. Observei muito, fiz anotações, me surpreendi com o que vi e ouvi e em muitos momentos me emocionei. Fotografei como um amador encantado. Muitas imagens hoje um tanto descoradas pela ação do tempo, muitas visões. Aquele era o meu primeiro olhar para dentro de um Brasil profundo. Foram duas semanas em duas viagens.
Concluí o livro e o apresentei em janeiro de 1996 à banca examinadora, que o recomendou para publicação pelo selo da editora da Universidade Federal. “Guajá, a odisseia dos últimos nômades” só fora publicado pela EDUFMA em 1998.
O livro tem para mim um valor sentimental inescapável. Retrata aquela experiência que não se mede. Talvez o escrevesse hoje com outra pena, outra pegada, mas com o mesmo alumbramento. O canto karawaiã dos Guajá quase sempre triste como o lamento do índio Irakatakoa ainda toca o meu ouvido. Estive no meio deles e fiz parte da karawarakaia, festa de preparação espiritual para a caça, um ritual raro que enaltece a força, a resistência e coragem dos bons caçadores e invade a madrugada. Ouvi de perto o tupi-guarani enraizado de Meraketxiá e Txipatxiá, os índios mais velhos da aldeia, símbolos de resistência daquele povo.
Classificados pela ong Survival International como a tribo indígena mais ameaçada do mundo, os Awá Guajá correm os mesmos riscos como há 18 anos, quando lá estive. Suas terras continuam alvo da cobiça de madeireiros, agropecuaristas e grileiros. O livro “Guajá, a odisseia dos últimos nômades” serviu de fonte de consulta para que o juiz federal José Carlos Madeira decidisse, em 30 de junho de 2009, pela tão esperada demarcação da terra Awá. A decisão histórica, contudo, ainda braceja em meio às procrastinações da justiça brasileira. Os invasores persistem nas terras dos índios transformando árvores frondosas em mobília nobre e, com o barulho da motosserra, espantando a caça para cada vez mais longe. Nos últimos dois anos, a Survival dedica-se a espalhar o seu grito de alerta pela Europa em apoio ao povo Awá Guajá. Até jogadores do famoso clube de futebol Chelsea já brandiram o lema “Salve os Awá”. O Brasil, por enquanto, desconhece essa luta.
“No coração da mata
Gente quer prosseguir
Quer durar
Quer crescer
Gente quer luzir”
Trechos do livro
A situação dos Guajá é preocupante. São índios acostumados com muita terra para perambular livremente. Há uma ameaça constante de extermínio físico e cultural. A história do povo Awá Guajá está diretamente relacionada com a trajetória de muitas populações indígenas que chegaram a ser exterminadas no início da colonização brasileira. Por ter uma origem nômade, os Guajá se resguardam dentro das matas e mantêm características culturais semelhantes aos grupos indígenas da época do Brasil Colônia. Com a diferença crucial de que esses últimos conheciam a agricultura e tiravam dela a mandioca, o milho, a batata, o feijão, o amendoim, a abóbora etc.
A história dos índios no Maranhão é apenas um reflexo da história já contada sobre os índios no Brasil. Com algumas variantes culturais, os índios no Maranhão também foram escravizados, usados como mão de obra em grandes plantações, selvagemente dizimados pela colonização e tiveram suas terras ocupadas ao longo dos anos. As missões religiosas fizeram a sua parte e mutilaram a alma e a cultura de alguns povos.
Quando os colonizadores chegaram ao Maranhão havia cerca de 250 mil índios espalhados por todo o estado. Hoje os dados da Funai anunciam uma população de pouco mais de 12 mil índios. Muitos dos povos encontrados no estado, a partir de 1612, foram extintos, como os Kenkatelê, Kapriekã, Araiose e Sakamekrã. Dos povos originários do Maranhão, sobreviveram apenas os Tenetehara (Guajajara e Tembé), Canela (Apaniekrá e Rankokamekra), Krikati e Gavião. Hoje, somam-se a eles os Urubu-Kaapor, Guajá e os Timbira da Geralda. Esses grupos estão situados em 16 áreas indígenas e dividem-se nos troncos lingüísticos Tupi (Guajajara, Tembé, Urubu-Kaapor e Guajá) e Jê da família dos Timbira (Canela-Apaniekrá, Canela-Rankokamekra, Krikati e Gavião).
As áreas indígenas do Maranhão têm uma superfície aproximada de 1 milhão 653 mil hectares, o que corresponde a cerca de 5% do território do estado. Os Awá Guajá são considerados povos tradicionalmente pacíficos. Atacam somente quando é preciso se defender. Os grupos isolados utilizam apenas o arco e a flecha feitos de fibra de tucum e de taboca. Os grupos contactados pela Funai acrescentaram ao seu convívio o uso de espingardas, facas e facões.
A convivência com outros grupos indígenas hoje pode ser considerada pacífica. No passado houve intensa disputa pelo território com os Urubu-Kaapor e com os Tenetehara. Os violentos confrontos causados pela guerra da Cabanagem, ocorrida entre os anos de 1835 e 1840, no Pará, podem ter sido a causa da migração dos Guajá da região situada entre o baixo Tocantins e o alto Moju para a direção leste. As primeiras notícias da presença dos Guajá nas matas do Maranhão datam de meados do século XIX. O antropólogo Mércio Pereira Gomes afirma em relatório que “é provável que os Guajá fizessem parte, por volta de 1500, junto com outros povos tupi-guarani, de um complexo cultural mais ou menos homogêneo”. Esse complexo seria formado pelos atuais Parakanã, Assurini, Urubu-Kaapor, Amanajós, Anambé, Tenetehara e outros grupos já extintos. Os grupos teriam se dividido em culturas específicas devido aos danos provocados pela colonização portuguesa no baixo Amazonas.
Desde a criação do primeiro posto indígena no Maranhão, em 1913, o Serviço de Proteção ao Índio (o antigo SPI, que depois deu origem à Funai) tomou conhecimento da existência dos Guajá. A população estimada era de aproximadamente 600 índios. Com o início dos anos 1930 essa população aumentou significativamente e chegou a quase mil índios na década de 1950. Estudos históricos contam que esse aumento se deu por quedas demográficas entre os Guajajara, Tembé e Urubu-Kaapor, tradicionais “inimigos” dos Guajá, provocadas por diversas epidemias. Mas os Guajá tiveram que enfrentar outra situação adversa. Vários lavradores provenientes dos vales dos rios Mearim e Itapecuru e de cidades do interior do Nordeste, tangidos pela seca, iniciaram a ocupação de terras nos vales dos rios Pindaré, Caru e Gurupi, área tradicional de perambulação dos índios. Os confrontos foram suficientes para reduzir drasticamente a população Guajá.
Algumas tentativas isoladas de contato foram feitas até o início da década de 1970. Mas foi em março de 1973 que uma equipe de funcionários da Funai e a antropóloga Valéria Parise fizeram oficialmente o primeiro contato com um grupo de 13 índios Guajá, na parte alta do rio Turiaçu. Pouco tempo depois foi criado o posto indígena Guajá, na área Alto Turiaçu, onde também vivem os índios Urubu-Kaapor.
Os contatos intensificaram-se de lá para cá e hoje existem cerca de 200 índios* registrados pela Funai e vivendo em aldeias próximas aos postos indígenas. Cada posto é assistido por um chefe, um enfermeiro e mais dois ou três funcionários. José Damasceno** está à frente do posto Awá há um ano, mas já havia trabalhado com os Guajá em épocas passadas. Além de televisão com parabólica, o posto conta também com geladeira, fogão e rádio-amador.
Hoje os índios ocupam os vales dos rios Gurupi, Turiaçu, Caru e Pindaré e estão espalhados também pelas serras do Tiracambu e da Desordem, na Reserva Biológica do Gurupi. Os grupos Guajá são formados por uma média de seis famílias e reúnem aproximadamente 30 pessoas. As aldeias de Txipatxiá e da reserva Alto Turiaçu, devido ao longo tempo de contato com a Funai, já extrapolaram esse "limite". Vivem basicamente da caça, da pesca e da coleta de frutos e armam seus acampamentos nas proximidades dos babaçuais. Da palmeira do babaçu, além da palha para cobrir os tapiris, retiram o coco para a alimentação.
Percebe-se logo que os grupos já integrados à Funai apresentam níveis razoáveis de aculturação. Os índios que permanecem isolados na mata preservam as características originais do povo Guajá.
- Hoje os índios Guajá contactados não querem andar nus. Por influência do branco, eles procuram estar sempre de roupa na comunidade, a não ser quando estão tomando banho de rio. As roupas são doadas por nós – diz o técnico da Funai.
Não existe chefe nas comunidades Guajá. As decisões são sempre tomadas em conjunto, por homens e mulheres. Na aldeia próxima ao posto de Damasceno prevalece a liderança informal dos índios Txipatxiá e Meraketxiá, que é o casal mais idoso. Essa "liderança" entre os Guajá é baseada em conceitos de bravura, de coragem. E a caça tem um significado para eles de tradição, respeito e virilidade. Txipaxiá e Meraketxiá são ouvidos e respeitados em tudo o que se refere aos interesses da aldeia. Meraketxiá, além de conselheira, atua como a parteira e todos a chamam de mãe na comunidade.
Os Guajá, ao contrário do povo Guajajara, não se pintam. Também não existe a figura do curandeiro ou pajé. A alimentação preferida é o macaco capelão e guariba, a cobra jibóia, o jabuti, a farinha de mandioca, o peixe e algumas frutas. Quando os índios voltam da caça, dividem o que foi coletado entre todos da aldeia. Não usam sal nos animais que trazem da caça, apenas nos peixes. A pesca do mandi, da sardinha, da piranha, do surubim e da arraia é feita com flecha ou anzol. Na aldeia de Txipatxiá utiliza-se o fósforo e panelas de alumínio para o preparo da comida.
- Se durante a caça eles abatem uma guariba que tem filhote, trazem o filhote para a aldeia e criam como se fosse um membro da família - informa o chefe do posto Awá.
As crianças brincam e, eventualmente, ajudam no plantio da mandioca ou caçam pequenas aves. Os homens, quando estão nus, amarram o prepúcio com fibra feita da palmeira do tucum. As índias amamentam os seus filhos até os 4 anos de idade. Amamentam também os filhotes de macaco, porco do mato, cutia e outros mamíferos de sua criação. Os funcionários da Funai dizem que os índios têm esses animais como parte da família.
A mulher Guajá casa-se com 6 ou 7 anos de idade. Desde cedo ela é "prometida" a alguém da família. Casa-se com um índio já adulto e passa a dormir com ele. A relação sexual, no entanto, acontece somente depois da primeira menstruação da índia. A mulher menstruada fica a maior parte do tempo deitada e não pode tocar nas armas dos índios.
- É pra não dá azar - explica o índio Takamã.
Os homens só casam depois de adultos, quando começam a participar dos grupos de caça. O índio pode ter mais de uma mulher. Em alguns casos, a mulher também pode ter mais de um marido. Na aldeia próxima ao posto Awá, quando Mereketxiá morrer, a pequena Yauatraí, que é sua neta, de aproximadamente 12 anos, se casará com Txipatxiá.
Depois que o homem Guajá casa, todo o resultado de seu trabalho é destinado à família da mulher. As índias ajudam na caça, na retirada de lenha, na plantação de mandioca e no preparo da farinha, além de cuidarem da casa. A comida é feita tanto pelo homem como pela mulher. Há um detalhe, porém, com relação às mulheres. Quando têm filhos pequenos, em fase de amamentação, as índias dedicam o tempo a eles, abdicando de outras atividades.
Chega a noite. É hora de ir à aldeia conhecer um pouco mais sobre os índios. A picada que nos leva aos Guajá é estreita e a escuridão da noite lembra uma longa madrugada. Durante a caminhada, o medo de onça e cobras é aparente.
O único ritual que movimenta a cultura Guajá é a realização da karawarakaia, uma espécie de preparação espiritual para a caça, em noite de lua cheia. Os homens cobrem parte do corpo com pena de gavião, usam pena de tucano nos braços e no cocar. Dançam e cantam dentro e fora de uma cabana coberta de palha, a takaia. A família reverencia o caçador ajudando-o a cantar. Quando o dia amanhece, saem para a caça e só voltam para a aldeia depois de semanas ou meses. Eles utilizam também o canto karawaiã e a dança em noites de reunião ou de festa na aldeia.
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O povo nômade mais ameaçado do mundo. Neste texto Felix Alberto relembra o texto da pesquisa que resultou em livro.
ResponderExcluirParabéns pela iniciativa, Felix Alberto. Que o mesmo seja um chave para o despertar dos poderes, das instituições e da sociedade maranhense para o grito pela vida deste que é um povo precioso para o Maranhão, o Brasil e a humanidade.
Moisés Matias
É isso aí, meu caro Matias. Você é o responsável por isso tudo. Nunca vi uma ideia vaga tão feliz e tão intensa. Obrigado mais uma vez.
ResponderExcluirEu participo de um projeto, que vem trabalhando com os tenetehera da aldeia Juçaral, no Amarante. Este envolve a educação, porém, mesmo participando eu sai do curso e entrei para a Enfermagem em outra faculdade. Ainda assim, participo do projeto, como vamos para a aldeia todo mês, podemos ver a situação que está ocorrendo com os awa. E eu queria fazer exatamente o que você fez, correr atrás para tentar mudar a situação da saúde deles, enfim, eu queria poder conversar melhor com você para saber da sua experiência, meu contato é janainaalmeidadeaquino@gmail.com e o WhatsApp é 099 9112-5955. Sua pesquisa foi perfeita.
ResponderExcluirPrezado Félix.... Como conseguir um exemplar do seu livro? Em caso negativo, seria possivel encaminhar uma cópia "escaneda"? Se sim..... meu contato é uinala@yahoo.com
ResponderExcluirGrato
Antenor Vaz