Oficialmente instalados em São Luís no dia 8 de setembro de 1612, com a fundação do Forte de São Luís, os franceses não tardaram a criar o primeiro documento que regeria a nova colônia. No dia 1º de novembro daquele ano, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, e François de Razilly assinaram o documento denominado Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial. O texto tem um valor histórico incomensurável e é considerado por alguns como a primeira constituição das Américas. A Constituição da França Equinocial é, portanto, uma espécie de registro de nascimento de São Luís, com regras severas que estabeleceriam a convivência harmoniosa entre os ocupantes da terra nova e os nativos tupinambás.
As leis fundamentais são especialmente cuidadosas, pelo menos no papel, com os índios e os padres capuchinhos. Para tanto, estabelecem nas primeiras linhas a obediência e respeito a Deus e instituem a religião Católica, Apostólica e Romana para os silvícolas. Em um dos trechos do documento, os emissários da corte francesa ordenam que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, “pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia”. Igual punição seria atribuída ainda aos que violassem as mulheres solteiras da colônia.
Atos desonestos praticados contra as filhas dos índios – o que provavelmente seria o abuso sexual - transformariam o infrator, na primeira tentação, em escravo na colônia por um período de um mês. Na segunda tentação, seria amarrado com ferro aos pés por dois meses. Na terceira vez, estaria sujeito ao julgamento que a missão entendesse como justo – o enforcamento, por exemplo.
A pena de forca, aliás, era atribuída a quem cometesse furto pela segunda vez – em casos de “réu primário”, o infrator era açoitado ao pé da força, ao som da corneta, e condenado à suspensão de salários e outros benefícios por um ano. Acaso o furto fosse praticado por empregado doméstico, ainda que pela primeira vez, a forca era o caminho natural.
Leia a íntegra do documento:
Leis Fundamentais da Colônia da França Equinocial
Em nome de Sua Majestade, nós, Daniel de La Touche, Cavaleiro e Senhor de La Ravardière, François de Razilly, também Cavaleiro, Senhor do dito lugar e de Aunelles, procurador do alto e poderoso Senhor Nicolas de Harlay, Cavaleiro, Senhor de Sancy, Barão de Molle e Gros-Bois, Conselheiro de Estado e do Conselho Privado do Rei, loco-tenentes-generais de Sua Majestade nas Índias Ocidentais - tendo empreendido, por graça de Deus, o estabelecimento de uma colônia francesa no Maranhão e terras adjacentes, e a conversão dos habitantes ao cristianismo, de acordo com as intenções do Rei de França, nosso Soberano e Senhor, e de conformidade com o poder que nos outorgou Sua Majestade, como consta das cartas patentes que nos deu, e ainda em obediência à autoridade e à vontade da Rainha Regente, nossa Soberana e Senhora, julgamos necessário e conveniente, antes de qualquer outro alicerce, decretar, para esta colônia, as mais santas leis, e as mais adequadas, na medida do possível, ao nosso princípio, tendo por certo que sem a Justiça ordenada por Deus aos homens, sua imagem, não pode existir república alguma. Portanto, reconhecendo a graça, a bondade e a misericórdia demonstradas por Deus ao conduzir-nos tão felizmente a bom porto, começaremos pelas ordenações que dizem especialmente respeito a sua honra e a sua glória.
Ordenamos, pois, expressamente, a todos, quaisquer que sejam qualidades e condições, que temam, sirvam e honrem a Deus, observem seus santos mandamentos e prometam não estimar nem empregar senão os que souberem ter essa santa e reta intenção;
Ordenamos que não blasfemem em Seu santo nome, sob pena de multa para os pobres de França arbitrada pelo Conselho de conformidade com a qualidade das pessoas, até a terceira vez, devendo na quarta ser punido corporalmente o blasfemador, segundo sua qualidade;
Ordenamos a todos e a quem quer que seja, que honrem e respeitem os reverendos padres capuchinhos, enviados por Sua Majestade a fim de implantarem entre os índios a religião Católica, Apostólica e Romana, sob pena de serem punidos os infratores segundo o caso e a ofensa perpetrada;
Ordenamos que ninguém, qualquer que seja a condição, embarace ou perturbe os ditos capuchinhos no exercício da religião ou de sua missão de conversão das almas dos índios, isso sob pena de morte;
Depois de estabelecido nos artigos supramencionados o que diz respeito principalmente à glória de Deus, determinamos agora o que se relaciona com a honra de nosso Rei, o qual houve por bem distinguir-nos com sua escolha para representá-lo neste país. Ordenamos, pois, que ninguém atente contra nossas pessoas ou contra a vida da colônia, por meio de parricídios, atentados, traições, monopólios, discursos feitos no intento de desgostar os habitantes, e cousas semelhantes, e isso sob pena de ser o infrator considerado criminoso de lesa-majestade e condenado à morte, sem esperança de remissão;
Ordenamos expressamente aos que tiverem conhecimento de atos tão perniciosos, que os revelem incontinente, sob pena de igual castigo;
E como os membros de um corpo não podem existir sem um chefe que os dirija, ordenamos que cumpram todos os seus deveres para conosco e nos prestem a obediência que nos é devida, de acordo com a intenção de Sua Majestade, e empreguem suas forças e disponham de suas vidas em benefício desta colônia, em todas as ocasiões, empresas e descobertas necessárias, que porventura ocorram, sob pena de serem considerados covardes e tratados segundo sua infidelidade e desobediência.
Depois de estabelecido o que diz respeito à honra e ao serviço do Rei, representado em nossas pessoas, assim como ao bem-estar e à segurança desta colônia, ordenamos, para manutenção desta companhia e da sociedade, que vivam todos em paz e amizade, respeitem-se mutuamente, segundo as condições e qualidades pessoais, e desculpem uns aos outros suas fraquezas, como Deus manda, e isso sob pena de serem considerados perturbadores do sossego público;
Ordenamos que o edito relativo aos duelos, baixado pelo invicto monarca de feliz memória, Henrique o Grande, nosso falecido Rei, que Deus haja, seja estritamente observado em sua plenitude; e juramos nós jamais fazer algo em contrário, quaisquer que sejam as considerações, bem como não perdoar aos infratores. Por isso, proibimos expressamente aos principais de nossa companhia que jamais intercedam a favor dos faltosos, sob pena de nos desagradarem e passarem pelo vexame de uma negativa;
Ordenamos que o autor de qualquer homicídio, a menos que perpetrado comprovadamente em legítima defesa, seja punido de morte para exemplo;
Ordenamos que quem quer que seja, convencido de falso testemunho contra quem quer que seja, sofra a pena que caberia ao acusado;
Ordenamos que quem quer se encontre furtando, seja, da primeira vez, açoitado ao pé da forca, ao som da corneta, e sirva durante um ano nas obras públicas, com perda, nesse espaço de tempo, de todas as dignidades, salários e proveitos; da segunda vez, seja o infrator enforcado. Em se tratando de criado doméstico, seja já no primeiro roubo enforcado;
Depois de estabelecido o que diz respeito a esta companhia, tanto com referência aos bons costumes, relações mútuas, proteção de suas vidas e honras, como à segurança de seus bens, ordenamos, para a conservação dos índios entregues a nossa proteção, e também para atraí-los pela doçura ao conhecimento de nossas leis humanas e divinas, que ninguém os espanque, injurie, ultraje, ou mate, sob pena de sofrer castigo idêntico à ofensa;
Ordenamos que não se cometa adultério, por amor ou violência, com as mulheres dos índios, sob pena de morte, pois seria isso não só a ruína da alma do cristão, mas também a da colônia; igualmente ordenamos, sob pena idêntica, que não se violem as mulheres solteiras;
Ordenamos que não se pratiquem quaisquer atos desonestos com as filhas dos índios, sob pena, da primeira vez, de servir o delinqüente como escravo na colônia por espaço de um mês; da segunda, de trazer ferros aos pés por dois meses; da terceira, de ser conduzido a nossa presença para o castigo que julgarmos justo;
Proibimos ainda quaisquer roubos contra os índios, seja de suas roças, seja de outras coisas que lhes pertençam, sob as penas supramencionadas.
E para que tudo fique claro e bem acertado de uma vez por todas, ordenamos sejam estas ordenações lidas e tornadas públicas na presença de todos e registradas como leis fundamentais e invioláveis na secretaria geral deste Estado e colônia, para serem consultadas quando necessário. Em testemunho do que assinamos as presentes ordenações com o nosso próprio punho; e serão subscritas por um de nossos conselheiros, secretário ordinário. Forte de São Luís, Maranhão, dia de Todos os Santos, 1º de novembro de 1612, (aa) Raverdière - Razilly. Pelos meus senhores: (a) Abraão.
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