quinta-feira, 14 de julho de 2011
Diários de fotografia
Foram quase dez mil quilômetros percorridos pelo interior do Maranhão. Fotógrafa paulistana, Bianca Cutait saiu em busca do improvável, do imprevisível. Homens, mulheres, crianças, brancos, pretos, índios, paisagens, objetos e tudo o mais que a lente da câmera alcançasse. Depois de cinco anos de estrada, encantamento, prosa e pesquisa, tudo isso revelaria em 252 páginas as imagens da poética fotográfica de Bianca. Ela visitou cada um dos 217 municípios do estado clicando do chão ao céu, com uma infinidade de anotações distraídas que ajudam a decompor o “olhar distante” sobre a maranhensidade. O resultado da odisséia está no livro “9.357 km de segredos pelo Maranhão”, lançado pela editora Décor na FIESP, em São Paulo, no mês de abril, e com previsão de lançamento em São Luís até o mês de setembro.
Correr atrás do improvável é puro eufemismo. A pressa de São Paulo ficou para trás em 2004, quando Bianca Cutait decidiu fincar bandeira no Maranhão. E qual uma bandeirante da modernidade, entregou-se à missão de desbravar terras cada vez mais distantes e desconhecidas. A primeira visita a São Luís ocorreu em 1999, numa viagem rápida com o pai, o médico Raul Cutait. Retornou seis anos depois para passar o Carnaval. Ficou quase um mês e fez a primeira série de fotos do Maranhão.
Bianca Cutait tem formação em relações públicas e alguns trabalhos realizados na área do marketing político. Começou a fotografar aos 11 anos por influência de Mohamed Bassiouni. “Ele é o meu mestre, ensinou-me muita coisa e mostrou-me os caminhos da fotografia”, diz ela. O que parecia ser apenas uma simples brincadeira acabou virando encantamento. Tudo começou a passar pela lente da fotografia.
Dos vários lugares visitados, alguns de difícil acesso, houve sempre uma história para contar, algumas reveladas nas páginas em papel couchê do livro, e tantas outras para guardar na memória. A realidade, nem sempre atraente aos olhos e lentes da fotógrafa, ora assustava, ora deslumbrava. “Às vezes a realidade é tão crua que dói na alma. Noutras é puro deleite”. Bianca constatou, nos seus diários de fotografia, que no interior do Maranhão a mendicância é uma miragem. Os meios de sobrevivência, pela grande angular de Bianca, estão ao alcance de qualquer um, e talvez bem longe das estatísticas. Mas a fartura, segundo ela, cria o ócio. “A letargia toma conta da vida das pessoas de maneira impressionante; é como se não houvesse horizonte ou terra nova para conquistar”, diz.
Chamou a atenção de Bianca um lugarejo conhecido como Currais, povoado de São Bernardo. Ela encontrou naqueles confins o lugar mais lindo do mundo. O “lugar mais lindo do mundo” faz parte da poética fotográfica de Bianca. A foto poética, de acordo com o conceito da própria autora, é aquela que vai dizer por si alguma coisa. “Se não diz aos outros, diz a mim”, conta. “E como sempre quero dizer mais, resolvi escrever algo sobre aquilo que vi e fotografei”.
Bianca, que morou a vida inteira em São Paulo – com pequenos hiatos fora do País – identificou-se com a atmosfera do Maranhão. Libanesa de sangue, ela foge da estética do trivial. Busca inspiração nos detalhes, nas pequenas coisas. Esquiva-se, por exemplo, das paisagens arquitetônicas que, via de regra, despertam a curiosidade dos fotógrafos que aportam no cais da sagração. “O que me fascina é esse conjunto de coisas que me fazem, a todo instante, abrir os olhos e o coração; são as pessoas, o cheiro, os costumes, a fala, a comida, a expressão no olhar dos maranhenses”.
Além de ter fotografado lugares que considera especiais, Bianca Cutait guarda com devoção fotos que fez de B.B. King, de quem se tornou amiga. Fez também fotos memoráveis dos músicos do Buena Vista Social Club. O alvo pode ser um artista famoso ou um ilustre desconhecido do sertão maranhense. O que importa para ela são os movimentos e os tons de luz.
O maestro João Carlos Martins é uma das principais influências da fotógrafa paulistana. Nele Bianca conseguiu fundir som, imagem e movimento. “Fotografá-lo é a coisa mais incrível do mundo”. Ela fez o trabalho de assessoria de imagem para o maestro. “João Carlos passa um movimento que me fascina; a vida dele é totalmente inspiradora”, define.
A viagem pelo Maranhão foi longa e cheia de aventuras. Mas havia São Luís como porto seguro. Na bagagem, uma máquina digital, uma analógica com filme P&B e uma filmadora.
Os percalços da viagem foram batizados de “bianquices”. Ainda que fosse uma mancada, tudo valeria a pena para tirar uma boa foto, diz ela. Num dos roteiros, em que percorreu a região sul maranhense, Bianca foi parar no hospital de Imperatriz. Tudo por conta do melhor ângulo para tirar a foto de uma índia Krikati, em Montes Altos, que convalescia nua numa rede. Ela quis fazer uma foto sem banalizar a imagem da índia. “Só que eu me inclinei tanto que caí de costas”. A queda lhe valeu uma distensão muscular e dores pelo corpo. Por coincidência, a índia da foto era a curandeira da tribo. “Ela me benzeu, me deu um colar e a dor passou”, conta a fotógrafa. Com a perna imobilizada, Bianca interrompeu a viagem por alguns dias.
Influências místicas acompanharam a trajetória de Bianca Cutait pelo Maranhão. Desembarcou em São Luís em 2004 numa cadeira de rodas e com uma sacola de remédios para tratar forte crise de labirintite. “Na primeira viagem aos Lençóis, esqueci os remédios em casa e nunca mais tive qualquer sinal de labirintite”.
A fotógrafa viveu experiência ímpar em cada trecho, cada pedaço de chão batido. As confissões ganhavam forma de diário no encontro com o inesperado. O caderno de anotações serviu de guia e companhia. “Saía por aí colecionando minhas impressões e coisas escritas por amigos que ganhava, inclusive rabiscos e desenhos de crianças”, comenta. De tudo ficou um enorme laço afetivo. “É tudo tão forte que às vezes tenho a sensação de que já vivi aqui em outra vida”.
O livro do desassossego de Bianca, que ganhou vida em cada esquina das cidades do interior, é farto de material fotográfico e simplicidade. Não espere dele o primor em estética, mas uma carga forte de arrebatamento. De alguém que, de uma história ou outra contada na calçada, sob a luz da lua, tem um encontro fortuito com o destino.
Fragmentos do diário de Bianca
“De longe, ouvi a senhora dizer que minha sina era ter ido para lá, que Deus quis que eu visse tudo aquilo, e que estava marcado no meu destino. Todos se surpreendem com a realidade distorcida, e tantos olhos incrédulos. Mistérios que não se apagam mais. A cada passo, marco dentro de mim um território imaginário”
“As crianças gostam de me seguir. Vou me banhar e tenho bastante companhia. Vou comer e tenho muitos espectadores. Vou dormir e vários me vigiam. É engraçado. Elas me seguem com os olhos, eu as sigo com o coração”
“Já aprendi a fazer xixi de cócoras. Demorou, mas aprendi. Sinto que aprender coisas simples às vezes pode ser difícil. Redundante, não? Aprendi até a ver o sol nos dias mais chuvosos. Nem a picada de marimbondo me deixou nervosa. Nada me incomoda, talvez essa seja a sina sobre a qual a senhora se referia”
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Quando falam que o valor da vida está nas coisas simples, ainda ficamos desconfiados.Só quando vivenciamos algo do tipo é que refletimos e vemos que é verdade.
ResponderExcluirPelo que percebi, o livro consegue reunir esse olhar suave de alguém apaixonado por aquilo que faz e por isso torna-se interessante. A Bianca está de parabéns.
E é o Maranhão, essa terra de mistérios e surpresas que nem nós mesmos conseguimos desvendar.
Félix, parabéns pelos textos, crônicas e lembranças sempre recompensadoras dessa nossa incrível ilha.
Abraços
http://senhor-do-tempo.blogspot.com