sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cartas do futuro (1)


Você era tão linda de máscara. O castanho escuro dos olhos, cílios guarnecendo suavemente as pálpebras, sobrancelhas com desenho delicado realçando a pele alva, a voz um tanto embaraçada na franja seminua do tecido... 


Aquele ar de mistério por trás do adereço me ganhou no primeiro encontro por entre as gôndolas da farmácia, na seção de cosméticos. Era março ainda. Um dia pra não esquecer. Disputamos quase ao mesmo tempo o último frasco de álcool gel da prateleira. Deixei que você o levasse, as mãos úmidas e ligeiramente trêmulas tateando o medo.


Com o tempo, fui me encantando mais e mais. O cabelo esvoaçante, os brincos de um metal suave enfeitando a tarde, o movimento sutil dos ombros ao dissimular a timidez, o perfil político compenetrado, a servidão aos protocolos, o jeito de falar dos receios da solidão, de me advertir sobre riscos de contágio, tudo me fascinava.


Até aquela máscara tinha um quê de sedução. O tecido lembrava um veludo lilás que me remetia à infância... As alças encobertas por fios de algodão peruano eram qualquer coisa de outro mundo, não feriam a pele, não te deixavam orelhuda como eu percebia em outras mulheres mais descuidadas. Ao contrário da minha, tua máscara nunca embaçava os óculos de aros modernos e lentes de policarbonato.


Você era tão linda de máscara. Parece que o bairro todo parava pra te ver saindo de casa entonada naquela máscara último modelo, design arrojado... Alimentei por longos meses o desejo de tocar tuas mãos, de lentamente retirar tua máscara (e guardá-la como se estivesse colecionando um amuleto, um troféu), de sentir teus lábios, de me enroscar na tua língua que jamais avistei...


Por tantas vezes me peguei imaginando o recorte do teu nariz, a boca carnuda, os dentes alvos, o hálito de pastilha Walda. Mas mantivemos o distanciamento sexual, como premonitoriamente pedira a ministra. 


Jamais vou esquecer aquele teu aroma têxtil que me causava um certo borogodó. E que as outras meninas não tinham.


Os dias se passaram e nós ali, encegueirados, nas aulas online, no homework, no delivery, na rotineira expectativa do PCR... 


Aí veio a vacina. E você tirou a máscara, Íris! 


Agora, fevereiro, estamos nós em pleno Carnaval. Ah, você era tão linda de máscara... Mas hoje, aqui no meio da folia, nessa aglomeração infinda, observando teus traços à luz da ciência, vejo que restou da gente apenas aquele vulto de um veludo lilás.

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