Quando a literatura liquidifica-se com desmedida elegância e é servida ao leitor com doses alquímicas de cinema, música, quadrinhos e toda a parafernália da cultura pop, estamos diante de algo revelador e muito próximo da crua realidade contemporânea. Assim é Bangu à beira-mar, o romance de estreia de Érico Cordeiro que ao mesmo tempo seduz, pela narrativa envolvente e a combinação de episódios pitorescos da história, e espanca, pela habilidade com que esgrime o som e a fúria de certos personagens.
Érico Cordeiro não é cristão-novo na literatura. Já publicou outros títulos sobre música e cultura contemporânea, dois temas que ele domina com insuspeitada devoção, e tem em casa pelo menos dois balaios de poemas prontos para qualquer quermesse intelectual. Mas em Bangu à beira-maro autor inaugura uma jornada nova na sua escritura. A tecelagem de um romance exige imaginação engenhosa e uma certa fleuma em relação ao fato narrado e a urdidura dos personagens.
O livro deliberadamente funde ficção e realidade – aquilo que o próprio autor classificará como obra de fricção – e esboça um mosaico de nomes, lugares e incidentes, numa espécie de nuvem que encobre a aventura humana na terra do clã Baptista de Moura Facundo e daqueles que estão na sua órbita.
Tudo começa no sertão do Ceará do início do século passado, quando um coronel arruinado, como outras “multidões de avoantes sem asas”, comanda a diáspora rumo ao desconhecido no sudeste brasileiro. É, antes de tudo, um romance visceral entrecortado por uma poesia com alma, pólvora e dentes.
Do sertão para o Rio de Janeiro, que experimenta, como agora, os efeitos da gripe espanhola, o inimigo invisível que aterrorizou o mundo entre 1918 e 1920. Do Rio para Milão, o autor deixa rastros de um bem armado enredo policial e traz de roldão, diretamente ou por vias transversas, personagens conhecidos da ciência, do meio artístico, da economia e da política, e segue embolando imaginação e realidade com a desenvoltura de um prosador nato, arrojado.
Nise da Silveira, Dona Ivone Lara, João do Rio, Ataulfo Alves, Herbeth de Souza, Gramsci,
Prestes, Sinhô, Madame Satã, Marighella, Vargas, Mário Lago e outros vão entrando livremente na história de Érico Cordeiro ao lado dos fictícios Baptista de Moura Facundo, todos nomes postos numa féerica e lúcida linha de montagem narrativa. Frente a frente com Mussolini, o autor mergulha nas entranhas do fascismo com a destreza de um samurai.
Da Itália para a Lapa, a boêmia, o samba, o terno de linho branco, o cheiro do sexo, o coldre e o vermelho sangue espirrando nas sombras de um Rio antigo e malandro. A viagem está posta na página. A tarifa de embarque é o apetite do leitor para a venturosa fortuna daquela inventividade quase verossímil que só os bons autores são capazes de empreender. Bangu à beira-mar é uma obra em franca fruição.
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