terça-feira, 24 de março de 2020

Saudade de como a gente era



Hoje acordei com um nó na garganta. Aos poucos a manhã de terça-feira foi me tomando de saudade. Saudade de nada tão longe assim. Saudade de quando a vida lá fora era tão bruta e maravilhosa, e no meio da pressa ninguém se dava conta. Saudade de ver o mundo de perto, e não apenas pela fresta da janela como agora. Saudade de janeiro e fevereiro. Saudade de outubro e novembro. Saudade do Natal, das confraternizações enfadonhas carregadas de ternura e açúcar. Saudade até de agosto. Saudades de ontem mesmo.

Saudade de quando a gente se esbarrava no meio do expediente com um sorriso nos olhos. Saudade de quando a gente apertava as mãos sem desconfiança, sem aquele pensamento instantâneo no álcool em gel ou numa pia com água e sabão. Saudade de sermos nós mesmos, sem essa mania de higiene que nunca fomos. Sem essa desconfiança no outro. Sem máscara! Saudade do olho no olho.

Saudade de quando éramos um mundo cheio de problemas, de crises financeiras aqui e acolá, de opiniões divergentes sobre política, credo e economia, mas um mundo onde podíamos circular livremente, sem o toque de recolher, sem o som alto da sirene das ambulâncias chamando a atenção dos bairros para o confinamento. Saudade de um mundo sem a morte à espreita na esquina.

Saudade de levantar da cama cheio de planos – e não de despertar no meio de um pesadelo que mais parece uma dessas séries de TV cuja primeira temporada tem como clímax o pavor, o desespero. Vivemos um confinamento cerebral, um isolamento social que mexe com as emoções e nos joga mais ainda no labirinto das telas dos smartphones em busca de respostas e janelas de afeto que nunca se abrirão.

Hoje acordei com saudade de ir ao cinema no domingo, de ir á barbearia no sábado pela manhã, de assistir ao futebol com a galera na quarta-feira. Saudade de tomar uma cerveja com os amigos no bar, falar alto, rir de qualquer bobagem, abraçar forte um desconhecido na hora do gol.

Saudade das soluções milagrosas do Vick Vaporub e do Biotônico Fontoura. Saudade do aconchego em praça pública. De ir à banca de jornal, de correr no parque. Saudade daquele medo banal, de fantasmas e assombrações. Saudade de, na azáfama do dia, encontrar o mar e com ele trocar impressões sobre o homem e o tempo. Não temos mais o mar no percurso diário. Perdemos a brisa e o azul do céu. Perdemos a bravura. Somos poltrões encastelados na incerteza.

Saudade de ir à casa dos pais e avós e com eles ficar até o fim da vida, de colocar a cabeça no colo para aquele longo cafuné que só as mãos de uma mãe sabem empreender. Saudade de ouvi-los falar de suas saudades, sem pressa. Saudade de rezar um Pai Nosso de mãos dadas na igreja sentindo aquela energia que vem não se sabe de onde.

Saudade das minhas mãos como elas eram, quando em tudo podiam tocar, livres, desimpedidas, em pleno gozo de desobediência civil na antessala dos bons hábitos. Saudade dessas reuniões que nunca chegam ao fim, na repartição, nas assembleias de condomínio. Saudade de pisar na calçada, de visitar o quintal. Só isso. Saudade de atravessar a fronteira da minha rua. Hoje acordei com saudade de quando a gente se via. Saudade de como a gente era ontem. E não sabia.

Um comentário:

  1. "Saudade é o que se sente de tudo aquilo que foi e se tem certeza de que nao voltará nunca mais"

    ResponderExcluir