quinta-feira, 27 de outubro de 2016
Cecília Leite e o refino da MPB
Apesar de insultada diariamente pelo fliperama comercial que toma conta da programação de emissoras de rádio e TV, a música brasileira de qualidade resiste aos maus tratos e reinventa-se com elegância debaixo dos temporais do mercado. A cada verão surgem nomes novos que heroicamente arriscam voz e poesia num território dominado pelo refrão barato e melodias medonhas. Nos últimos dez anos assistimos a uma profusão de cantoras - algumas delas de reconhecido talento - que, involuntariamente, estão inaugurando a pós-MPB, a música sem fronteiras, sem cabresto estético, que provoca espasmos do Chuí a Madri. Cintilam nessa contracena da indústria cultural Roberta Sá, Tulipa Ruiz, Ana Cañas, Tiê, Mariana Aydar, Clarice Falcão, Thaís Gulin, Patrícia Bastos, Céu e Anna Ratto, só para ficar numa dezena dos nomes mais ilustres.
Há em cada uma a marca da autenticidade, de um estilo peculiar. A maranhense Cecília Leite é dessa mesma linhagem de cantoras engenhosas e de repertórios inventivos, que fogem dos clichês e dos chicletes. Agora com o lançamento de Enquanto a chuva passa, o seu segundo disco, ela tira o brevê do refino e entra de vez para o time das mulheres que cantam porque, longe da aventura, conhecem o percurso da voz e o mapa das canções.
O novo CD de Cecília Leite é uma enchente de brasilidade, insurgente, e que, por isso mesmo, vai dar em qualquer mar. Com Enquanto a chuva passa a cantora chega à água depois de experimentar o calor do primeiro álbum lançado em 2004 - Fogueira, um tambor de crioula de César Nascimento, é uma metáfora entre o fogo e a paixão.
Enquanto a chuva passa, como o próprio nome sugere, não é rural mas tem cheiro de terra molhada. O disco, fiel ao bom gosto, faz interseções inspiradas porque conta com um time de músicos de primeira grandeza. É o samba que flerta com o jazz, a valsa que cruza com a bossa no infinito da canção e o blues que sorrateiramente corteja um bolero. O CD transborda em luminosidade e sofisticação, talvez por exigência da própria Cecília Leite, para quem a música nunca foi brinquedo. Brincar com a voz é uma coisa. Isso ela sempre fez desde os tempos de universidade. Cantar é outra conversa, quase um sacerdócio, que exigiu dela estudo e muita dedicação.
O veio de Enquanto a chuva passa nasce com uma música inédita de Zeca Baleiro, Tem dó, um toque meio afro com acabamento luxuoso de Lui Coimbra, que assina o arranjo da maioria das faixas do disco. Lui excede-se num violoncelo arrebatador que também se desmancha em outras canções. Improvável não se entregar. Tem dó expõe ainda a percussão cadenciada e transcontinental de Marcos Suzano.
Difícil apontar qual o melhor momento do disco, tamanha é a responsabilidade de quem o ouve. Mas eu apostaria minhas fichas na faixa que dá nome ao álbum. Enquanto a chuva passa é a única música assinada por Cecília Leite, o recorte autoral de um CD que tem compositores do naipe de Paulinho da Viola, Pixinguinha, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, além de Zeca Baleiro. É uma bela canção de pôr do sol, um brinde ao amor, o momento da entrega plena, duradoura, que se completa com uma taça de vinho.
Toda mulher acima dos 30 anos ou tem ou já teve Chico Buarque na cabeça. Pode ser um exagero, talvez. Mas só Cecília Leite gravou com ele Eu te amo, em francês, música incluída no primeiro disco da cantora maranhense. No novo disco, Cecília revisita Chico na canção De todas as maneiras, um quase tango de verão deliciosamente harmonioso. Seule, de Pixinguinha e Vinícius, é outra pérola do CD, uma valsa perdida no tempo e lapidada com esmero pela voz aveludada no francês de Cecília.
A cantora junta num balaio incidental os poetas José Chagas e Ferreira Gullar, passeia pela embolada de Patrícia Polayne e entoa um xote de Pedro Luís e Lula Queiroga. Em Maré cheia, Cecília Leite arrasta a sandália num sambão de Bruno Batista que expõe a bailarina das lembranças e vicissitudes, a tal fatal, a bacante apaixonada de São Luís e do mundo.
Cecília Leite poderia muito bem estar num desses palcos boêmios da Lapa ou no calendrier des arts de Paris, mas prefere tecer a vida sem pressa, ao sabor dos caprichos da vida. Assim ela vai passando a chuva. O novo disco, pela intensidade de suas doze canções, abre caminhos promissores como uma leve brisa que assovia a chegada do final da tarde.
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