Por Eduardo Júlio
Faz 20 anos. O ano, lógico, era 1993. Tempo em que nós ainda bem jovens desfrutávamos de certo alívio pela retirada, com certa ajuda nossa, de Fernando Collor, da direção do país, no ano anterior. Passada a euforia, estávamos tranquilos numa tarde na UFMA, quando ouvimos alguém anunciar: “Vai acontecer o Festival de Cultura e Arte da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ouro Preto. Um ônibus vai sair da UEMA e eles liberaram duas vagas para nós”. Pensei eufórico instantaneamente: “Opa! Uma vaga tem que ser minha”.
Antes que alguém questione o que estudantes de Veterinária, Agronomia e Engenharia Civil da UEMA fariam num encontro de arte da UNE, esclareço: naquele tempo o estudante da universidade estadual e militante do PCdoB, Stephano Nunes - atualmente empresário - era vice-presidente da UNE. Daí, a razão de um ônibus de lá partir para um encontro, digamos, lúdico, em Minas Gerais.
Já tinha conhecido Ouro Preto, de forma rápida, no ano anterior, quando participei do Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação (Enecom), ocorrido em Belo Horizonte. Não sei exatamente a razão do meu encantamento pela cidade colonial mineira. Talvez me agrade a beleza da arquitetura, com casarões e ruas de pedra tristes, calmas e saudosas. Magia que também existe no Centro Histórico de São Luís e nos de outras cidades brasileiras.
Mas Ouro Preto tem uma geografia muito singular, uma aura suntuosa, em razão de estar situada entre montanhas. À noite, fica tomada pela neblina. Se não me engano, é a segunda cidade mais alta de Minas.
Em 1993, a chapa Contraponto venceu as eleições para o DCE da UFMA. Os meus amigos Elício Pacífico, que então cursava Economia (depois se formou em Letras), era diretor de Cultura da entidade, enquanto o estudante de Direito Jorge Moreno presidia o diretório. Por isso, teoricamente, as duas únicas vagas da Federal eram deles. Mas a sorte iria se voltar para mim.
Dois dias antes da viagem, eu estava batendo papo no corredor do Pimentão (como sempre fazíamos nos intervalos ou não das aulas), quando Jorge Moreno passou caminhando devagar, divagando. Sem grandes esperanças, aproveitei para abordá-lo sobre o encontro: “Você vai para Ouro Preto?”. Ele prontamente respondeu; “Não vou. Fique com a minha vaga. Vá amanhã na UEMA e inscreva-se. Corra, que o prazo vai encerrar. Dei literalmente pulos de alegria e até hoje sou grato pela gentileza de Jorge Moreno.
Mas a jornada para Ouro Preto se configuraria numa verdadeira aventura cheia de lances legais desde a largada. Pra começo de conversa, no dia da viagem, os servidores da UEMA, apoiados pelos estudantes, resolveram deflagrar greve. Então, estávamos todos na praça Deodoro, por volta das 19h, hora marcada para a partida, mas o ônibus nada de aparecer. E haja espera. Só foi chegar às 23h, depois que vários pais se mobilizaram para negociar com o reitor e buscar o motorista em casa, se não me engano, na Cidade Operária.
Nesse intervalo, dois estudantes da UFMA, Marcio Jardim e Iroan Bezerra, que passavam pela Deodoro, vindos da universidade, avistaram o burburinho e resolveram integrar a caravana com a roupa do corpo e livros na mochila. Iroan ainda deu uma passada em sua residência para pegar alguns pertences, afinal, ele morava bem pertinho da Deodoro, na famosa Vila Inah Rêgo. Márcio Jardim, que morava bem longe do Centro, nem cogitou em passar em casa. Ficou por lá mesmo e, quando o ônibus chegou, foi um dos primeiros a escolher o assento, cheio de moral e entusiasmo.
Portanto, a UFMA ficou um pouco mais representada na viagem.
Um detalhe: Iroan era famoso pela capacidade de suportar baixas temperaturas com pouca roupa. Uma lenda universitária dizia que num encontro em Curitiba, realizado no final dos anos 80, ele teria enfrentado, numa boa, uma temperatura de 4ºC à noite, só de camiseta. Em Ouro Preto, iríamos, de fato, comprovar a fama do rapaz. Iroan repetiria a performance, andando tranquilamente pelas ladeiras da cidade, debaixo de um frio que fazia encolher a alma, vestindo somente uma camiseta regata, daquelas que se usa na praia.
O ônibus partiu e, se não estou enganado, deu algumas voltas pelo Maranhão, antes de seguir para Minas, catando estudantes da UEMA no interior. Num dos municípios, subiu Fábio Kerouac, um aluno de Letras da cidade de Caxias, famoso pelo apelido que reverenciava ou referenciava o escritor norte-americano da geração beat, Jack Kerouac. Há quem diga que este foi o único encontro de Fábio Kerouac com Eduardo Beat, como me chamavam no passado. Fabio Kerouac, dizem, mora hoje na Alemanha, o país.
Fábio, além de ter proporcionado um pouco de irreverência ao ônibus, trouxe várias boas fitas cassetes e fomos ouvindo uma trilha sonora que incluía o disco “Misplaced Childhood”, do Marillion, e um da Sinead O'Connor em que ela canta standards de jazz. Foi lindo apreciar os campos verdes de Goiás e as montanhas de Minas ao som do rock progressivo do Marillion. Não esqueço também a chegada ao Planalto Central, em pleno pôr-do-sol, seguido de lua cheia, curtindo o piano etéreo de Keith Jarrett, no “Köln Concert”, cuja fita levei na mochila.
A viagem de ida somada com a de volta durou seis dias, porque o motorista sabiamente não dirigiu à noite. Encostava num posto de gasolina qualquer e seguia pela manhã, mesmo com o protesto dos passageiros, que não viam a hora de chegar. Portanto, passamos dois terços da viagem na estrada.
Durante todo o festival, que durou três dias, eu só dormi cinco horas e, justamente, na primeira noite. Quando não estávamos em bares, andávamos, subindo e descendo as ladeiras da cidade, acompanhados de amigos que fizemos no encontro e que nunca mais encontramos.
No segundo dia, por exemplo, amanheci, sob o frio, num gramado próximo a uma igreja, curtindo uma vista panorâmica. Foi a forma que encontrei de aproveitar o máximo de tempo em Ouro Preto. O sono acumulado tentei compensar na volta dentro do ônibus.
A delegação do Maranhão ficou hospedada na famosa república Aquarius - fundada em 1969 em plena efervescência do movimento hippie - que, dizem, é a mais antiga de Ouro Preto. E, ao contrário do que podem suscitar as más línguas, estas casas são bastante organizadas, com normas rígidas de convivência. Por mais de uma vez, estudantes internos do local chamaram a atenção da gente, reclamando dos exageros cometidos pela delegação maranhense. Inclusive, quando um rapaz acendeu um cigarro de maconha na hora errada. Pelo menos, na época era assim.
Em frente à república, na famosa Rua Direita, encontramos um barzinho que vendia somente Kaiser. Na época, essa cerveja era uma novidade e achamos uma delícia. Daí, decidimos fazer daquele bar o nosso ponto de encontro. Eu, Elício e o estudante da UEMA Joaquim, que não me recordo o sobrenome, e que conhecia de vista de longas datas, passamos uma boa parte do tempo naquele boteco. Assim, tomávamos café da manhã por lá, bebendo Kaiser. Pode? Ok, estávamos todos com pouco mais de 20 anos, ou seja, não tínhamos paladar apurado e sequer conhecíamos cerveja de verdade.
Enquanto bebíamos, as oficinas agitavam o encontro. A mais disputada de longe era a de somaterapia do psiquiatra e escritor Roberto Freire (1927-2008). A prática criada pelo autor de “Ame e dê Vexame”, que esteve por duas vezes em São Luís, atraía a juventude em razão do caráter libertário das vivências, com lindas garotas e rapazes alternativos exercitando a libido e a afetividade.
À noite, Roberto Freire era facilmente visto rodeado de belas jovens e discípulos em pizzarias e restaurantes. Naquela altura, eu tinha sido um leitor assíduo dele, mas tinha me decepcionado com o terapeuta, depois de uma resposta displicente dada a uma pergunta feita por Félix Alberto, no ano anterior, quando o escritor tinha passado por São Luís. Toda a admiração que tinha por ele acabou instantaneamente. Resultado: no dia seguinte, vendi no sebo do Poeme-se todos os livros de sua autoria que eu tinha lido.
Mas em 1999 ou 2000, não recordo exatamente o ano, Roberto Freire passou por São Luís novamente e eu fiz as pazes com ele ao entrevistá-lo de novo, lá no extinto restaurante Xique-Xique, que ficava próximo ao retorno do São Francisco, onde hoje resta um terreno baldio. Lembro que foi uma tarde bastante agradável.
SANFONA
O Festival de Cultura e Arte da UNE foi substituído posteriormente pela Bienal da UNE, que não sei se ainda existe. Em 1993, a programação cultural foi bastante rica, principalmente a musical. A memória me escapa um pouco, mas lembro que as três noites foram divididas por temas. Na sexta-feira, tocaram os melhores músicos de acordeon do país. Subiram ao palco da Praça Tiradentes, Renato Borghethi, Dominguinhos (1941-2013), Oswaldinho do Acordeon e Sivuca (1930-2006), acompanhados por feras como o violista Heraldo do Monte e o guitarrista Arismar do Espírito Santo. De todos, o que mais me encantou foi Dominguinhos, com uma performance arrebatadora.
O segundo dia foi dedicado ao rock e teve na abertura a banda brasiliense Os Cachorros das Cachorras, que executou uma engraçadíssima versão de “Black Dog”, do Led Zeppelin: “Ei mãe, me dê um boi zebu/ que é pra ele cagar e eu catar cogu/ ei mãe, eu já catei cogu/ agora eu tô curtindo esse visu”. Deu para sacar?
Mas a grande atração da noite foi a banda mineira Virna Lisi. Antes da entrada em cena do mangue beat pernambucano, o grupo era uma das promessas do rock nacional dos anos 90, misturando guitarras distorcidas com células de samba. O show da Virna Lisi tinha peso e uma energia e tanto, mas a banda não atingiu o estrelato e hoje é lembrada por poucos.
O último dia foi dedicado aos sons percussivos. A atração principal foi o Olodum, mas já era hora de voltar.
LEMINSKI
A poesia também teve um espaço especial no evento. Logo que chegamos, tinha sido montado um imenso varal com poemas na Praça Tiradentes. E eu aproveitei para pendurar algumas folhas com textos de minha autoria.
No ano anterior, a brasiliense tinha lançado o livro póstumo de Paulo Leminski, “La Vie en Close”, repleto de poemas memoráveis. Lembro de ter visto, no palco, um garoto magro, vestido com uma camiseta que tinha a imagem de Maiakóvski estampada. Ele recitou alguns poemas do livro de Leminski, incluindo "Lápide 1- Epitáfio para o Corpo", emocionando a plateia: aqui jaz um grande poeta/ nada deixou escrito/ este silêncio, acredito/ são suas obras completas. "Que a alma de Leminski esteja com vocês", disse o rapaz. Jamais esquecerei dessa passagem.
CONGELADOS
Para completar a viagem, ainda iríamos passar o maior perrengue morrendo de frio no pátio da rodoviária, à espera do ônibus da nossa delegação. A questão foi a seguinte: a volta estava marcada para as 21h do domingo, mas o motorista dormiu e só foi acordar por volta da meia-noite, deixando toda a delegação ao relento, congelando os ossos e a alma. Foram quase quatro horas de espera. Nenhum agasalho foi suficiente.
Quem conhece Ouro Preto, sabe que carros pesados, como ônibus e caminhões, não costumam descer. Estacionam no ponto mais alto e mais frio da cidade. E foi assim que terminou. Quando acordei, já passávamos por Goiás.
Foi uma viagem como tantas outras que fizemos no período, mas guardo com zelo a sua memória, como quem protege um pequeno objeto de valor afetivo numa caixa.
(imagens do arquivo pessoal de Eduardo Júlio)
Foi um vacilo nosso, estudantes da UFMA. Tinhámos que ter reivindicado mais vagas para nós. Perdemos essa e só nos resta o belo texto do Eduardo Júlio para contemplar e completar nossa memória.
ResponderExcluirÉ verdade, meu caro Celijon! Dormimos no ponto!
ResponderExcluirCansativo demais de ler, cheio de detalhes desnecessários
ResponderExcluirOs detalhes são aquilo que esclarecem a história, meu caro. É por eles que você chega mais próximo da realidade do que aconteceu. Pra mim este texto teve muita valia, pois escrevo uma reportagem sobre este festival.
ExcluirToquei na Banda Olodum neste evento. Muita saudade do festival. Momento mágico 👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽
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