Este terceiro livro de poemas de Eduardo Júlio, O sopro do lugar junto ao tempo, respira e transpira fora do quarteirão da quarentena. Nele, o autor, com sua rajada de versos, irrompe a espessa casca do espaço-tempo: de um lado, uma nuvem sobre a sala, as cidades que habitam o poeta, a montanha à espreita e o mar além; de outro, a miragem líquida de anteontem, a poeira no deserto dos olhos no presente e o atalho nefando para o amanhã que não ri, que não rima.
Em Alguma trilha além, o livro de estreia (2005), Eduardo Júlio visitou os poemas de acampamento, a beira da estrada, as pegadas na areia e os ponches da mocidade. Em 2020, com O mar que restou nos olhos, o poeta deu um salto quase olímpico – não por acaso o livro foi um dos finalistas do festejado Prêmio Jabuti – ao fundir memória e maresia, a Chapada Diamantina e uma praia selvagem de Alcântara, a melancolia do exílio e algumas janelas de afeto.
O sopro do lugar junto ao tempo é uma extensão em cinemascope do engenhoso livro anterior, com planos abertos e imagens mais nítidas, quase balsâmicas, mas que ainda preservam aquela elegância em sépia dos versos de outrora. Não há passadismo algum na poesia de Eduardo Júlio, mas uma nostalgia rara, franca, de uma velha modernidade que se esconde por trás da decantada primavera digital. O poeta, ‘observando o declínio sistemático/ da existência’, espicha os olhos por entre as antenas de telefonia até alcançar bianas enfeixando amores no oceano que corre logo ali depois dos telhados da cidade antiga.
Como nos primeiros livros, Eduardo Júlio segue errante escavando a vida pela margem, com a pá da palavra e suas sementes de guaraná e girassol, sempre decidido a se perder, feito um mochileiro que se recusa a enterrar as últimas quimeras de Ginsberg & Kerouac & Burroughs. Em ‘Um dia antes do fim do mundo’, talvez um dos poemas mais certeiros do livro, o poeta desembainha a sua toada:
pela manhã
tentei atravessar o continente
da minha janela
O autor recria imagens que nos parecem familiares, muito próximas de uma realidade coletiva. Parecem. Porém, revirada a carapaça do poema, há de se reconhecer que são imagens só dele, de tessitura muito particular. ‘O rio parecia correr ao contrário/ desde sempre’. Em algum momento, sem bilhete de embarque, transportamo-nos com o autor para Basra, ali no começo do mundo, no sopro mesopotâmico que ele nos proporciona, embalados por esse sussurro célere de encantamento metafórico, polifônico.
O livro de Eduardo Júlio abre caminhos improváveis e alimenta presságios como se o ‘para sempre’ fosse apenas uma questão de ‘abraçar o mar por instantes’. No poema ‘Inventário’ ele revisita um velho baú de saudade e madeira, como que se reencontrando com o pai, e em silêncio desfia uma oração feito salvaguarda de um tempo que não findará. Em ‘Alento’, ouve-se em certa frequência alguém cantando sob os escombros. E escuta-se a tinta clareando o céu de ‘Van Gogh’:
resta a noite estrelada
pronta para devolver algum fulgor
aos girassóis
Os sopros de lirismo estão em toda parte. Nas marés imprecisas de uma juventude que não secou (‘de três dias ou cinquenta anos/ nunca vou saber ao certo’). Nos uivos de um poeta convidando outro poeta a se lançar na tormenta. E na ventura de querer olhar o mundo outra vez com os pés. Mas nem tudo leva a crer que a poesia não suporta vicissitudes do futuro. O livro apenas sugere um lugar possível, um tempo verossímil, em que a inércia do leitor possa bater asas.
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