No final de 2019, o jornalista e escritor JM Cunha Santos me convidou para escrever o prefácio do seu segundo romance, Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Sol, que, segundo ele, seria publicado “em breve”. Logo veio a pandemia da Covid-19 e os planos de publicação do romance foram adiados.
Hoje, lamentavelmente, recebemos a notícia da partida do amigo Cunha Santos, um grande talento no malabarismo das palavras com quem tive a sorte de trabalhar em alguns projetos (pela Clara Editora publiquei o primeiro romance dele, A comunidade rubra) e de dividir muitas horas de prosa & poesia. Fica uma grande lacuna no jornalismo, na literatura, nos becos de São Luís e nos bares. E ficou este prefácio sem a luz do livro:
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JM Cunha Santos bebeu nas fontes de Thomas More e Erasmo de Rotterdam para tecer A comunidade rubra(Clara Editora, 2012), seu romance anterior que se impõe, da primeira à última página, como escape à perversão política e à degenerescência humana. O autor agora, neste Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Sol, aponta a sua lanterna para a escassez de luz que ronda o baldio da juventude.
O novo romance de JM Cunha Santos é intenso, carregado de metáforas, de linguagem certeira e instigante, como convém a um livro dirigido ao público jovem. Mas cabe, de saída, um alerta: não é uma obra exclusivamente para o olhar juvenil, porque toca também, sem alarde, em temas caros do tecido político e social de um recanto qualquer da galáxia chamado Porto da Aldeia, ali nos arredores do Sol.
O texto cortante alcança personagens atormentados com uma fartura de ingredientes que mistura dor, solidão, desventura, sexo sujo, drogas e um mix de pancadão que embala a cólera dos dias. A Convenção do Sol é quase uma lavagem de roupa suja entre príncipes, fadas, ninfas, poetas, maltrapilhos e outras divindades que, aqui e ali, auscultam o estampido da desesperança.
Há uma sensação permanente de desassossego entre os candidatos a herdeiros do Sol. A embolada onírica de JM Cunha Santos sugere a cura de todas as mazelas pelas páginas do Livro Azul. Sim, onde existe desassossego há poesia. E, à margem azul do livro, “poetas se apaixonam a cada dia por amores diferentes e sofrem, e tentam transformar dor em beleza”.
JM Cunha Santos, jornalista e poeta, domina a pena da ficção com a habilidade de um ourives sem ouro. É cuidadoso na narrativa e às vezes parece infiltrar-se nas zonas mais soturnas da trama, como na cracolândia estelar, por onde desfilam zumbis invisíveis, prisioneiros de um mundo sem grades que quase nunca amanhece.
O romance Os Herdeiros do Sol – A Convenção do Solnão é o prelúdio do fim do mundo, mas talvez um grito de alerta sufocado pelo som de harpas e a fúria da poesia ligeira, camuflada na composição de personagens abaladiços. Na ficção de JM Cunha Santos “ser feliz não é difícil”, mas é preciso “nadar no suor do Sol” para escapar das ciladas da amargura.
Quando o romance é também poesia, é possível saltar sem paraquedas na escuridão da trama. O livro diz muito, sem a pretensão de ser pleno. Sem panfleto. Sem bandeira. Porque a palavra, como desconfia o autor, é aquilo de que a poesia menos precisa.
Quem sabe na prosa a palavra seja o próprio o Sol. Ou, conforme a leitura, no mínimo a herdeira dele.
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