Numa viagem pelo Maranhão profundo, em 1995 tive o primeiro contato com os índios Awá Guajá, etnia de origem nômade reconhecida com uma das mais vulneráveis do planeta, devido à ameaça constante de madeireiros, grileiros e invasores de suas terras.
A convivência com esses índios de hábitos rudimentares – as mulheres da aldeia amamentam filhotes de macaco e porco do mato, por exemplo – resultou no livro Guajá, a odisseia dos últimos nômades, que publiquei dois anos depois pelo selo editorial da UFMA, como parte do trabalho de conclusão do curso de Jornalismo.
Essa convivência me fez também conhecer personagens e descobrir histórias fascinantes, como a de Karapiru, o índio que, ao se perder da família quando atacado por capatazes de uma fazenda no Maranhão, fora encontrado no interior da Bahia após dez anos de caminhada pelas matas do País.
A história de Karapiru é um dos capítulos desse pequeno livro sobre os Awá Guajá, escrito no calor dos anos estudantis. Além de curioso, o caso tem um desfecho inusitado. Em verdade, um desfecho emocionante.
Fico sabendo agora, contudo, que Karapiru, símbolo de força e resistência dos Awá Guajá pelos dez anos de solidão e caminhada errante, à procura de seu povo, perdeu a vida há pouco mais de uma semana para a Covid-19. Ele já havia tomado as duas doses da vacina, mas não resistiu aos efeitos da doença.
A morte de Karapiru, cuja saga reproduzo aqui em versão reduzida, é também a morte de parte da história dos Awá Guajá. Com ele vai a natureza em estado bruto, com sua simplicidade e pureza. Com ele vai a rara alegria dos Awá Guajá.
Dez anos de solidão
(trecho extraído do livro Guajá, a odisseia dos últimos nômades)
Final de tarde na aldeia de Txipatxiá. Alguns índios retornam da colheita de mandioca. Uns caçam. Outros tomam banho no igarapé. À sombra de um tapiri, sentados, estamos eu, Damasceno (o chefe do posto da Funai) e o índio Irakatakoa. Passo a ouvir histórias, e uma delas me chama a atenção. É a curiosa saga de Karapiru, que também nos faz companhia – de cócoras, como ele diz sentir-se à vontade para falar de “coisas da vida”.
Ouço com atenção o relato de Karapiru e Irakatakoa, que é enriquecido por informações mais recentes de Damasceno. Contam que o povo Awá Guajá, pela origem nômade, sempre andou em bando, tanto os índios já identificados quanto aqueles considerados ainda isolados. Em grupo, sentem-se menos vulneráveis.
Os índios ocupam os verdes vales dos rios Turiaçu, Caru, Pindaré e Gurupi, na Amazônia maranhense. Guardiões naturais da Reserva Biológica do Gurupi, de tradição nômade, são povos coletores e vivem basicamente de caça e pesca, ainda sem muita intimidade com a agricultura. A mandioca é apenas uma cultura em teste no cotidiano dos Awá Guajá.
A história remonta a 1978, quando a família de Karapiru fora vítima de um ataque de fazendeiros na cidade de Amarante (MA), supostamente enfurecidos pelo desaparecimento frequente de animais de suas propriedades. O grupo de aproximadamente 12 índios, dentre eles a companheira, pais, filhos e irmãos de Karapiru, foi surpreendido numa emboscada e, em meio a um barulhento tiroteio, cada um fugiu como pôde.
Karapiru, hoje com cerca de 55 anos, mal consegue formular uma frase num português compreensível – o tupi-guarani dos Awá Guajá também tem as suas peculiaridades. Tento entender o relato com a ajuda de Irakatakoa e Damasceno. Karapiru diz que no momento do ataque conseguiu escapar levando na fuga, sem rumo certo, a filha pequena nos braços. E que dali em diante não saberia mais de qualquer notícia sobre sua família.
A criança não resiste. O índio vê-se sozinho no meio dos capoeirais, cada vez mais distante de sua gente.
O filho de Karapiru, de nome Txiramuku (foto abaixo), então com oito anos, ficara preso nas cercas da fazenda, durante o ataque. Encontrado por uma família de lavradores, fora entregue a funcionários da Funai.
Completamente nu, perdido no meio da mata e com a impressão de continuar perseguido por capangas de fazendeiros, Karapiru avança cada vez mais em direção sul, alimentando-se do que encontra pelo caminho. Diz ter comido aves e muitos répteis, como camaleão e cobra, no princípio da caminhada.
Algum tempo depois, passa a fabricar flechas de taboca para caçar porco, cavalo, vaca e cabrito, nos arredores de vilarejos e fazendas por onde passa. Para se alimentar. Só descansa ao parar pra dormir, já na escuridão da noite. Essa é a rotina de Karapiru. Começa a deixar rastros quando passa a levar facas, machados, garrafas e outros pertences de famílias de mateiros e agricultores.
Quando não consegue improvisar uma cabana, dorme em árvores para se proteger do ataque de animais, como queixadas e jaguatiricas, e também de caçadores. Por algumas vezes Karapiru chega a ser visto por moradores do sertão. Ao tentar aproximação, provoca reações de espanto.
Karapiru conta que, em determinado momento da caminhada, fora visto atirando flechas em bezerros de uma fazenda, e que, por isso, teria sido atingido por tiros de espingarda numa das pernas. Escapou da morte porque evadiu-se do local e por ter usado folhas de uma planta para sarar as feridas.
Karapiru faz uma pausa na conversa e levanta-se. Irakatakoa e Damasceno falam que ele nunca relata a história completa da caminhada. Continuamos ali juntando peças para entender o conjunto. Karapiru anda agora de um lado para o outro. Recolhe do chão um velho arco e, de costas, atira a flecha para cima, que cai exatamente dentro de uma lata que ele havia colocado para a sua exibição, próximo de mim. Fico ligeiramente assustado. Damasceno explica que Karapiru, durante os anos de andanças pelo mato, adquirira habilidade especial com arco e flecha.
São dez anos de peregrinação solitária, cortando vilas, causando espanto e levando consigo a esperança de reencontrar seu povo. No dia 10 de outubro de 1988 começa a história que leva o índio de volta pra casa.
No município de Angical, no extremo oeste da Bahia, em meio ao milharal, um agricultor depara-se com uma figura magra, de traço físico incomum, nunca vista antes por aquelas bandas. Desconfiados, índio e agricultor se entreolham e cada um evita esboçar qualquer reação de medo. O índio tenta continuar a caminhada, carregando flecha, facão, panela e outros pequenos objetos estendidos na tipoia. Apesar do receio, o agricultor segue o índio que, depois de algumas tentativas, é convencido a acompanhá-lo a um assentamento de posseiros nas proximidades.
Karapiru vira o centro das atenções no vilarejo. É acolhido pelas famílias de agricultores e visto como o índio alegre, uma figura exótica que saiu das entranhas da mata e gosta de cantar, dançar e tomar banho de rio nu.
Logo informam a presença do índio ao escritório da Funai. Dias depois, segue para Brasília na companhia do sertanista Sydney Possuelo, então coordenador de índios isolados da instituição federal.
As características físicas e o comportamento arredio de Karapiru levam técnicos e antropólogos à suspeita de que estão diante de um índio da tribo dos Avá-Canoeiro, grupo do estado de Goiás de origem e traços semelhantes aos Awá Guajá. Karapiru ri quando diz que ficou conhecido por algum tempo pelo nome de “Avá”.
Mas havia também a desconfiança de que aquele índio poderia ser um Guajá. A Funai precisava de um intérprete para fazer o contato com o tal “Avá” para descobrir a verdadeira origem dele. Possuelo, que já conhecia de perto os Guajá, convoca o índio Jeí, do Maranhão, para fazer o contato. Jeí não pode ir. No lugar dele enviam outro índio Guajá, o Txiramuku, aquele do começo da nossa história.
Em Brasília, Txiramuku tem o primeiro contato com “Avá”, ainda no apartamento de Possuelo. Os dois índios apenas se observam por longo tempo. Txiramuku se aproxima. Técnicos e antropólogos acompanham o encontro a certa distância. Começa então a conversa entre os dois, num tom quase silencioso.
A certa altura do estranho diálogo, Txiramuku solta a pergunta, para espanto da equipe da Funai:
– “Avá”, qual é mesmo o teu nome?
– Karapiru.
– Não pode ser. Karapiru é o nome do meu pai – diz Txiramuku, dirigindo-se a Possuelo.
Todos ali estão surpresos com a possível coincidência. Alguns parecem não acreditar no que estão presenciando. A curiosidade se acentua quando Txiramuku faz uma revelação:
– É meu pai mesmo. O nome dele é esse aí e ele tem marca de chumbo nas costas – confirma, com a voz embargada, e pede a Karapiru que levante a blusa para mostrar as cicatrizes.
E lá estavam na pele as marcas de tiros que Karapiru levara antes do ataque de Amarante, quando a família ainda perambulava unida.
– Eu sou Txiramuku, o seu filho que ficou preso na cerca naquela ocasião do ataque a nossa família.
Os dois, emocionados, e ao mesmo tempo assustados com os olhares curiosos da equipe, conversam por mais tempo e tentam entender o que houve com cada um naqueles últimos dez anos.
Alguns dias depois, Karapiru é levado de volta à reserva indígena dos Guajá. Sobre os outros índios da família, não se obteve mais notícias. É provável que estejam por aí, rasgando as matas do Brasil perseguidos pela sombra do ataque daquele longínquo 1978. Se ainda vivos, estão entregues à própria sorte, alimentando a solidão na esperança de um reencontro com suas origens. O caso de Karapiru é um exemplo de resistência do povo Awá Guajá.
Karapiru é o símbolo da força dessa gente.
(texto escrito originalmente em 1995, editado com atualizações)
Fotos: Félix Alberto Lima
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