A entrevista abaixo com o poeta maranhense Ferreira Gullar, que hoje à noite toma posse na Academia Brasileira de Letras, foi publicada em dezembro de 1999 na revista Parla, editada pelas jornalistas Flávia Regina e Dadá Coelho. Gullar viera a São Luís para ser homenageado pelo governo do Maranhão como nome de avenida. A rápida passagem ficou marcada como a última visita do poeta à cidade retratada no antológico “Poema sujo”. Ora no saguão do antigo Hotel La Ravardiere [hoje Holliday Inn], ora caminhando no calçadão da Avenida Ferreira Gullar, fiz a entrevista acompanhado pelo inspiradíssimo bom humor – estratégico para quebrar a sisudez do poeta – de Dadá Coelho e pelo olhar atento e sensível do fotografo Márcio Vasconcelos.
Fotos: Márcio Vasconcelos
Produção: Dadá Coelho
Ferreira Gullar é o tipo do cara que, nos primeiros quinze minutos de conversa, você pensa em desistir da entrevista. Ele resiste a se entregar completamente à pauta, responde sem entusiasmo às primeiras perguntas e franze a testa. Mistura de charme de poeta feito e impertinência da idade, talvez. Mas se você insistir um pouco mais, vai perceber que uma hora e meia de bate-papo com o poeta não é o bastante. Gullar fala da infância, dos assombros da morte, da gramática como uma barreira nos primeiros anos de poesia, da música, de vaidades e academia de letras. “A quantidade de maravilhoso que existe no mundo é pouco. É preciso criar o maravilhoso [...]. Os artistas são fabricantes de maravilha”. Leia.
Quem é o Ferreira Gullar?
Eu me considero uma pessoa comum. Mas dizer que é comum parece que não é. Na verdade, sou uma pessoa comum, tenho a minha própria história. Cada pessoa tem a sua própria história. Essa cidade me revelou, ainda garoto, que o mundo é maravilhoso, que nascer aqui é maravilhoso. O que você sabe quando nasce? Nada. Você é um bicho que nasceu e olha a cidade, olha o céu, a manhã, a luz... Então eu vivia deslumbrado com a cidade, com o mundo, que o mundo era isso, era a cidade com os seus ventos, suas árvores, o verde e a luz, o verdadeiro paraíso. Quando descobri que as pessoas morriam fiquei espantado. É uma coisa meio chocante.
A morte ainda lhe causa espanto?
A morte é uma coisa constante na minha poesia. Não que eu viva pensando nisso, mas é para mim e todo mundo um problema fundamental, um problema essencial, é a tua finitude, ou seja, a festa vai acabar. Se o cara ficar pensando nisso, não vive. Não vivo pensando nisso naturalmente, mas de vez em quando, contra a minha vontade, a morte surge de um canto qualquer da cidade, ou na voz de alguém ou em algum momento. Essa lembrança, essa ideia... O livro “Muitas Vozes” trata muito disso e evidentemente quanto mais você vai vivendo, mais próximo você está do fim. Falo isso com um jeito meio mole, mas não encaro assim, não. Apesar de não desejar a morte, sei que é ela inevitável e encaro isso com naturalidade. Um dia vai acontecer. Eu até comento, às vezes, que eu desejo a morte, surpreendo-me desejando-a. É uma coisa estranha. Adoro viver, mas existe essa presença. No livro há, inclusive, estratagemas que invento para escapar, tentando me esconder do problema, que na verdade é um problema sem saída. Mas isso não é a minha preocupação constante. Fico preocupado é com o viver, como todo mundo.
Agora, em outro plano, como é o seu cotidiano?
Atualmente estava fazendo uma tradução das “Mil e uma noites” a pedido do editor e passava parte do dia trabalhando nisso. E sempre tenho alguma conferência ou palestra para fazer. Então vou escalonando o tipo de ocupação que tenho. Uma das coisas que faço é desenhar. Também vou ao supermercado, passeio pela praia. Como moro próximo à praia, de vez em quando largo o que estou fazendo e saio, vou passear na praia, no calçadão ou do lado de cá da avenida. Às vezes, encontro um mendigo que não me conhece, alguns veem na televisão minha cara, outros me cumprimentam, me saúdam. Tem uma espécie de colônia de mendigos na rua Ministro Vieira de Castro. Há uns cinco deitados ali o tempo todo. Eu passei uma vez lá e um deles levantou-se e disse:
- Poeta Ferreira Gullar, esporadicamente, leio os seus livros!
O volume de trabalho não provoca ciúmes nas pessoas que estão a sua volta?
A Cláudia [a namorada Cláudia Ahinsa, poeta carioca] mora com a mãe dela e eu moro com o Paulo, meu filho, numa outra casa. Nós adotamos esse sistema de nos encontrarmos quase todo dia. Vou na casa dela ou ela vai na minha. Vamos ao cinema, saímos para jantar. É melhor que ficar permanentemente um grudado no outro. Isso só desgasta a relação. O Ziraldo, quando estava me entrevistando para a revista Palavra, perguntou: -
E você e a Cláudia? Cadê a Cláudia? Eu disse:
- A Cláudia não mora aqui, não. Mora com a mãe. E ele então falou:
- Mas você conseguiu o ideal, cara?!
Muitos casais mais novos não admitem morar em casas separadas.
Mas é que eles estão for fora. Os casais mais novos em geral não entendem muito das coisas. Essa ideia é besteira, bobagem. Também fui jovem, era um babaca... O jovem em geral é babaca. O jovem tem muita vitalidade, muita coisa altamente positiva. Agora, entende pouco das coisas. A vida é que vai dando experiência. O jovem não sabe de nada, o jovem é radical, não entende muito das coisas. Eu também fui jovem, queria tocar fogo em tudo, queria ir pra luta armada...
O senhor quis tocar fogo em tudo?
Eu não. Os jovens queriam. Quando fui jovem era um pouco mais afoito, mas nunca fui de querer tocar fogo. Sempre fui um pouco desconfiado, a realidade é mais complexa do que se pensa. O que faz o cara ser radical é pensar que a realidade é simples. É pensar algo do tipo “vou derrotar a ditadura com luta armada!”.
A gramática foi uma barreira no começo?
Uma vez a professora passou para a minha turma da escola uma redação sobre o Dia do Trabalho. Fiz a redação, mas descobri um caminho diferente para escrevê-la. Como no Dia do Trabalho ninguém trabalha, descrevi os escritórios vazios, as lojas fechadas e então ficou uma coisa que, para a professora, pareceu muito original. Quando foi dar a nota, ela disse na turma que a melhor redação era a do Ribamar, que só não ganhou dez porque havia dois erros de gramática no texto. Fui ver quais eram os erros e comecei a estudar gramática, porque achava que para ser escritor eu tinha que saber gramática. Fiquei dois anos só lendo gramática, até hoje sei o nome dos autores. Acho meio maluco uma pessoa que, de repente, fica só lendo gramática.
O senhor quis ser músico no início da carreira?
Eu era adolescente e tinha que ter um ruma na vida. Como meu pai era comerciante, a alternativa seria seguir a profissão dele. Mas não queria, absolutamente. E quando disse isso, ele sugeriu que eu fizesse um concurso para o Banco do Brasil. Meu pai me levou na agência do Banco do Brasil, aqui em São Luís, onde trabalhava um primo meu. Cheguei lá e vi todo mundo batendo máquina, fiquei horrorizado. Eu falei:
- O sol lá fora, uma manhã linda e esses caras aqui trancados? Eu não quero isso de jeito nenhum! Eu não vou fazer concurso. Aí eu pensava: o que eu iria ser na vida. Mais aí vi na revista Vamos Ler, que era vendida aqui numa banca da Praça João Lisboa, uma foto do Vinícius [Vinícius de Moraes], o poeta tocando violão. Eu disse: -
Essa é que é a boa profissão, tocando violão, cantando e tal. Vou ficar trabalhando num banco? Lembro bem dessa foto do Vinicius, ele está jovem. Não é que eu quisesse ser compositor, isso não era a minha praia. Mas ser poeta. Eu não tinha ideia clara, mas queria ser poeta, escritor, só não queria entrar naquela de ficar trabalhando como um maluco. Isso eu tenho horror!
A poesia tem muito isso do jovem que vislumbra aquela coisa boa da vida?
Acho que é isso. É um lado de encantamento e também uma coisa com relação à infância, porque no fundo a infância será sempre a idade de ouro, a idade maravilhosa em que você não trabalha, está descobrindo o mundo, a vida tem mais alegrias do que obrigações. Depois de adulto você tem que enfrentar os problemas. No fundo, o poeta, é um cara que não quer trabalhar, não quer assumir que é adulto. Ele quer preservar a criança, quer o encanto, preservar na vida – e ainda que seja na literatura – aquele lado maravilhoso que descobre no começo da vida.
A poesia, como em qualquer manifestação artística, tem o perfume da vaidade? Qual é o seu nível de vaidade?
Vaidoso todo mundo é, não existe pessoa sem vaidade. Os virginianos se caracterizam pela modéstia. A vaidade implica um pouco de burrice, pretensão. Há pessoas muito inteligentes que são extremamente vaidosas. Mas a pessoa mais inteligente que conheci foi o Darci Ribeiro e nunca vi ninguém mais vaidoso que ele. A vaidade é uma bobagem, uma coisa sem cabimento. As pessoas são iguais. O fato de você se tornar conhecido, de você realizar uma coisa bem, é algo que te dá satisfação. Tenho muito prazer, muita alegria de poder fazer a minha poesia, uma coisa que eu acho que eu faço com alguma qualidade, que as pessoas gostam. Agora isso não me faz superior a ninguém.
O senhor cuida da aparência?
Meu cabelo é comprido porque tenho preguiça de cortar, de ir ao barbeiro. Meu cabelo, quando eu cortava normal, como se cortava na época, ficava todo espetado e eu ficava irritado. Se cortar curto fica um troço que nem um porco espinho. Então fui deixando ele crescer e percebi quanto maior ele ficava, mais fácil de pentear era. Agora quero cortar, mas as amigas e a namorada não deixam. Se eu cortar o cabelo a Cláudia me larga. Esses dias está um pouco maior do que eu costumo usar.
Alguns compositores musicaram poemas seus. Mas como foi sua participação em “Borbulhas de amor”?
É, eu traduzi a pedido do Fagner.
O que o senhor achou do resultado?
A tradução ficou legal...
Então era a melodia que não prestava?
Não, não é isso...
E essa história de “dentro de ti um peixe?”
Não, aquilo eu liberei porque...
Era pior?
Eu liberei porque aquilo ali era brabo...Era pior. Agora é interessante o sucesso que aquela música fez.
A música [“Borbulhas de amor”] lhe diz alguma coisa?
A mim, não. Não me diz coisa alguma.
Como é que o senhor entrou nessa história?
O Fagner é meu irmão. Ele me ligou e disse: - Ô, parceiro tenho uma música aí que eu acho que vai fazer sucesso... Eu faço, profissionalmente. Ele me pede, eu faço. Então melhorei, a música era bem mais grossa, mas não podia tirar o negócio do peixe porque tirava o próprio sentindo da música. Mas aquilo é uma coisa de música popular, que não tem importância. É pro pessoal cantar mesmo, não é obra literária. E tenho uma opinião melhor que você sobra a música. Não acho que seja a coisa mais idiota. Acho que tem um certo mau gosto, que é esse negocio do peixe, mas é uma coisa erótica e que o pessoal adorou quando a versão saiu. Com uma semana estava no primeiro lugar. E não ganhei quase nada com aquilo porque Fagner, maluco, mandou traduzir sem autorização do autor. E o cara pediu de volta os direitos autorais. Resultado: uma cagada da braba. Ainda saí no prejuízo.
Há quem não goste de música, como o poeta João Cabral de Melo Neto, que fazia questão de assumir essa posição. É possível alguém rejeitar um música, independentemente do gênero?
Uma vez João Cabral me disse que preferia Ritchie a Beethoven. É claro que na gozação. Mas ele realmente não gostava de música. É porque João era muito intranquilo interiormente, muito inseguro. E ele tinha a necessidade de controlar a emoção. Tanto que a poesia dele é rigidamente estruturada por essa necessidade de controle da confusão interior. Ao contrario do que se pensa, a vida interior do João era de um tumulto muito grande, daí a necessidade de ter a ordem fora para controlar aquilo. A música é uma coisa invasora, a música não se controla, é uma coisa que arrebata, exatamente o que ele não queria. Para ele, a coisa pior era a emoção. Ficar emocionado era a pior coisa para o João.
Chico Buarque musicou o poema “Morte e vida Severina”. O que ele achou?
É, João me disse:
– Não gosto daquilo. E completou:
- Fui apresentado para esse Chico Buarque e falei assim: - Eu gosto muito do seu pai. Ele me contou isso.
As experimentações estão inundando as artes. Como o senhor avalia as instalações?
Alguma instalações são interessantes, mas isso é uma arte de segunda categoria. A arte efêmera é uma besteira. A arte tem que permanecer, a arte sempre foi isso desde que nasceu. Efêmero é tudo, não precisa fazer arte, caralho! A arte efêmera não é necessária. O que eu quero ver é fazer a arte permanecer, é fazer a Monalisa, que tem cinco séculos. É fazer o poema que fica, a quinta sinfonia, a nona, que as pessoas ouvem, os anos passam e o cara continua apaixonado. Isso que é o difícil de fazer. E enriquece o mundo, porque o homem é parte da natureza e a outra parte dele é cultura. Ele é imaginação, ele é invenção dele mesmo. Então, ele inventou a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas para fazer a vida melhor. Para criar o maravilhoso. Porque a quantidade de maravilhoso que existe no mundo é pouco. É preciso criar o maravilhoso. Então, com a sinfonia, você cria uma coisa maravilhosa. Não é búzio que você achou na rua, na beira do rio. Não se acha o maravilhoso a toda hora. A arte cria. Os artistas são fabricantes de maravilha.
O senhor sempre criticou as academias, mas foi homenageado agora pela Academia Maranhense de Letras. Como é essa relação?
É esquisito, porque não sou acadêmico e jamais vou entrar para Academia nenhuma. O Sarney outro dia me ligou: - Gullar, você tem que entrar porque você é o grande poeta. Eu disse que não vou entrar para a Academia de jeito nenhum, sou teimoso e chato, não entro. Sinceramente, não tenho nada contra a Academia, mas não sou acadêmico. A Academia é uma institucionalização, ela tem a função de preservar... Agora, o cara entra pra Academia, depois vai ser enterrado num mausoléu – os imortais ficam enterrados num mausoléu, são exceção. Eu quero ser enterrado como todo mundo, não quero exceção nenhuma, o meu barato é ser igual às pessoas, o barato é ser igual e fazer poesia. Se eu puder fazer uma poesia maravilhosa e ser o moleque periquito, isso é que é o barato. Agora, se sou um príncipe encantado e faço poesia, é uma merda! A poesia é feita por gente comum, é nossa, pertence a todos nós. Não sou escola de samba, caralho!
E o poeta ficou impregnado na cidade, agora em forma de avenida?
Aquela avenida [Avenida Ferreira Gullar, em São Luís] pra mim é uma coisa inacreditável, porque posso imaginar que estou eternizado – eternizado é um pouco forte. Mas agora estou na cidade, pertenço à cidade, sou parte da cidade, virei avenida, virei pedra, virei nome. É maravilhoso porque sou desta cidade, sou filho desta cidade, me identifico com ela. Eu disse para Roseana [então governadora Roseana Sarney] que nenhum presente mais maravilhoso poderiam ter me dado. Não há outra maneira de você permanecer a não ser essa, de você ser alguma parte da cidade. É uma grande alegria, embora seja estranho porque ao mesmo tempo ando de chinelo pela Rua Duvivier, [no bairro de Copacabana] no Rio, e fico pensando:
- Sou avenida lá em São Luís e estou andando aqui nessa rua de chinelo? É uma coisa meio estranha, mas a vida é assim mesmo.