Certa vez, em pleno palco, um bailarino russo torceu o calcanhar num desses rodopios de balé e foi parar no hospital. Ao examinar o raio X, o médico constatou que a estrutura anatômica do pé do bailarino era semelhante ao sistema ósseo de um pássaro. O médico, meio assombrado, disse que não se admiraria se um dia o bailarino viesse a voar. O bailarino russo era Vaslav Nijinsky, um dos principais nomes da história da dança, polêmico, de personalidade ambígua, alma atormentado, gênio e esquizofrênico. Nas suas inúmeras apresentações pelo mundo, no auge da sua forma física, fez do balé o seu voo nupcial, o seu casamento com o palco, a sua conexão com Deus, ele considerado o próprio “deus de sapatilhas”.
Assim como Nijinsky, bailarinos como Diaghilev, Anna Pavlova, Nureyev e Baryshnikov revolucionaram a dança com seus passos mágicos e fizeram do balé uma arte quase divina. Na segunda-feira 13, São Luís anoiteceu com uma espécie de revoada russa sobre o palco do Teatro Arthur Azevedo para festejar antecipadamente o aniversário de 65 anos do cronista Pergentino Holanda. Em cena, o Balé Nacional da Rússia apresentando “O Lago dos Cisnes” para uma plateia de convidados ilustres do aniversariante.
O Balé Nacional da Rússia, ao lado do Bolshoi, é uma das principais escolas de talento da dança internacional e por isso mesmo deixou o público maranhense de queixo caído durante cerca de duas horas e meia de apresentação. São Luís nunca viu nada igual nessa combinação de coreografia, iluminação, figurino e música. Jamais uma plateia se demorou por tanto tempo, perplexa e aparentemente extasiada no silêncio, diante da técnica e dos saltos de 40 bailarinos que pareciam desafiar a lei da gravidade com seus passos alados.
Não é preciso ser um conhecedor profundo ou frequentador assíduo dos grandes espetáculos de balé – e, por razões óbvias, o público maranhense não o é – para se encantar com a apresentação da companhia russa. Porque os bailarinos prendem a atenção do começo ao fim pelo movimento intenso, são viçosos na criatividade. E também porque “O Lago dos Cisnes”, do compositor russo Tchaikovsky, entrou para a história pelo clássico enredo que envolve sedução, magia e amor trágico em torno do príncipe Siegfried e da princesa Odette. Não é simplesmente um balé, mas uma obra de arte secular que cativa, sem fronteiras, o mais bárbaro dos homens. Originalmente dividido em quatro atos, “O Lago dos Cisnes” foi apresentado em São Luís em dois atos, os dois primeiros e os dois últimos mesclados no mesmo bloco, identificados somente pelo rápido fechamento e abertura da cortina.
E como não se deixar prender também pela música de Tchaikovsky, arrebatadora e envolvente, cheia de mistérios e evoluções que enfeixam com estupenda precisão o balé dramático dos cisnes? Mesmo sem uma orquestra de câmara a ditar pelas cordas do violino o compasso dos dissabores vividos por Siegfried e Odette, o som direto do teatro faz acompanhar os altos e baixos de um coração em escala. Nenhuma alma embrutecida haverá de resistir ao cortante “Cisne Negro” ou ao sopro de felicidade em “Swan Lake 38 no 21 danse espagnole”.
Um evento no teatro que une a Companhia do Balé Nacional da Rússia com seus dançarinos meticulosos e voadores, “O Lago dos Cisnes” e o gênio musical de Tchaikovsky não é uma comemoração de aniversário, mas uma celebração engenhosa, com a assinatura de quem aprendeu a se surpreender. Falei com PH por algumas vezes nos dias que antecederam o espetáculo, e o vi aflito como se aquele fosse o seu evento de estreia. Um esmero desmedido, uma atenção especial aos detalhes, ao refinamento para receber o lendário balé e o seu séquito de convidados.
Para alguns poucos, a apresentação do “Lago dos Cisnes” no Teatro Arthur Azevedo pode até ter parecido uma história longa e delirante, sem diálogo, exaustiva. Mas não para os amigos do PH, como Ceres Murad, que não titubeou ao dizer a ele, no foyer do teatro, que por aquela casa nunca havia passado um espetáculo tão virtuoso. “O maior e melhor de todos”, deixou escapar Ceres, conhecedora sagaz da arte pelo mundo. PH comemorava não só o aniversário, mas a sua volta ao Teatro Arthur Azevedo, do qual foi diretor no final da década de 1970 e de onde foi vitimado pela intolerância míope do maniqueísmo forjado durante o regime militar. Naquela noite se deu o triunfo do cisne, que hoje comemora de fato os seus 65 anos. Parabéns, Pergentino.
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